Manuela Löwenthal *
Na última semana, redes sociais e sites cristãos foram dominados por um alerta: “Não leve seus filhos para ver o filme Barbie”. Não foram poucos os pastores e figuras importantes no cenário evangélico que publicaram vídeos e textos afirmando que este filme seria uma apologia ao feminismo e que incentivava mulheres a odiarem homens e a negarem a maternidade. Mas, afinal, a Barbie realmente é feminista? E por que o feminismo é uma ameaça para os valores cristãos?
Tal alarde teve início com um informe vindo do maior e mais importante Guia de filmes cristãos, o Movieguide, organização norte americana que fornece orientações para a seleção de filmes para famílias cristãs e emite alertas sobre filmes que possuem temáticas que podem ameaçar a família, como ideias que promovem narrativas LGBTQIA+ ou feministas.
Embora esta seja uma organização norte-americana, tais pautas possuem grande apelo entre muitos grupos evangélicos brasileiros, basta dar uma rápida olhada nos comentários de vídeos e lives do youtube sobre o porquê de o filme da Barbie não ser compatível com os valores cristãos.
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Mas quem são os evangélicos que seguem essa linha de pensamento? Será que são manipulados pelos pastores? Essa é uma questão bastante comum e podemos dizer que essa relação é uma via de mão dupla, se por um lado o ativismo político evangélico de direita impulsiona a polarização política e moral e molda, em parte, um projeto liberal conservador fundamentalista que reforça e reproduz uma agenda moral antipluralista, há também um público específico que abraçou essas causas (talvez por já possuírem tais valores?), e que politizam seus ideais e ganham força através de tais controvérsias. Ou seja: não se pode anular a racionalidade desses fieis, as pessoas têm suas próprias ideias, valores e posições (que não são neutras e nem descontextualizadas), porém, há também uma dimensão importante deste problema: a distorção das narrativas.
As motivações dos evangélicos são legítimas: defender a família, proteger os filhos, querer justiça social ou o fim da corrupção. O problema não está nisto, mas sim na forma com que tais valores são distorcidos e instrumentalizados por alguns grupos políticos a fim de obter poder e manobrar tais ideais, que nada mais são do que a defesa dos Direitos Humanos. Porém, não são percebidos como tais, sendo colocados como problemas de ordem moral. Da mesma forma, o termo Direitos Humanos é colocado por esses grupos como algo ligado ao “esquerdismo”, como “defesa de bandido”.
Defender a família é um direito humano, querer o bem dos seus filhos também, porém, atores conservadores colocam tais temáticas como algo em disputa, confundindo o que está em jogo. Isso acontece em torno de políticas afirmativas de gênero e raça, direitos reprodutivos e direitos sexuais, e os direitos da mulher são colocados como algo ameaçador à ordem familiar.
Tal confusão coloca em disputa pautas sociais profundamente importantes para o desenvolvimento da sociedade e possuem como seus principais atores deputados e lideranças evangélicos que atuam de forma bastante ávida no espaço público, trazendo em suas ações as contradições de uma sociedade modificada, na qual se colocam como porta vozes de um grupo que não concorda com tais mudanças, e que defendem a moral de valores tradicionais, bons costumes e trabalham de acordo com uma visão de mundo heteronormativa e por uma ordem patriarcal de família.
Mas para quem é interessante a manutenção de uma ordem patriarcal? Talvez o filme dá uma dica de quem seja este grupo: a Barbilândia é um mundo onde as mulheres que organizam a sociedade, são independentes e autônomas. O medo que muitos estão manifestando em relação ao filme talvez seja a projeção de um medo real.
Para que este mundo nunca se torne real, muitos são os atores envolvidos que trabalham ativamente para impedir certos avanços, vimos isso de forma bastante clara durante o governo Bolsonaro: toda e qualquer tentativa de avanço em relação aos direitos das mulheres e das minorias era barrados arduamente. Embora este governo tenha oficialmente finalizado, as ações conservadoras no Congresso não cessaram, e mostram cada vez mais que pretendem permanecer e se fortalecer.
Em artigo recente, o ISER (Instituto de Estudos da Religião) publicou uma relação de Projetos de leis em circulação na Câmara Federal Nacional que relacionam de alguma forma temas vinculados a questões morais e religião. Segundo artigo, uma das categorias mais mobilizadas dentro da amostra analisada é “Direitos da Mulher”.
Os partidos que mais propuseram projetos com tal tema são os de direita, em específico o PL (partido do ex-presidente Jair Bolsonaro). Muitos destes PLs não são aprovados, porém, em grande parte a intenção é apenas comunicar algo ao seu eleitorado, reforçando seu posicionamento e transmitindo a mensagem: pode contar conosco que estamos marcando território.
A grande questão que está em debate, portanto, são as mudanças da sociedade, e a disputa está em torno de quem concorda e quem não concorda com essas mudanças. São mudanças reais na dinâmica da vida social, na divisão do trabalho doméstico, na configuração da família, no papel social de gênero, na conquista de direitos das mulheres e das minorias. Já foram várias as conquistas, mas ainda há muito o que se avançar, porém quanto mais se avança, maior é a resistência por parte da oposição.
Mas voltando para as perguntas iniciais: a Barbie realmente é feminista? O filme fere os valores cristãos?
Talvez o filme não possua um feminismo real e inclusivo, e se limite a pautas liberais, mas o que ele causou entre os “anti-feministas” foi interessante. Barbies que não existem mais apenas para serem usadas ou apreciadas como bonecas inertes, mas sim para inspirarem ou “influenciarem” meninas a serem independentes e autônomas é uma das mudanças que mais amedrontam aqueles que temem perder seus privilégios e suas posições de dominantes na escala social.
E talvez não sejam os valores cristãos que são ameaçados pelo filme, mas sim aqueles que utilizam a religião como instrumento de dominação.
*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.
** Manuela Löwenthal é doutoranda em Ciências Sociais pela Unifesp, pesquisa temas vinculados à Religião e Política no Brasil. Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (2012), onde também obteve o título de mestre. É pesquisadora do projeto Temático “Religião, Direito e Secularismo: A reconfiguração do repertório cívico no Brasil contemporâneo”, financiado pela FAPESP. Atua também como Professora de Sociologia na Rede Estadual Paulista.
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