“Quando você foi embora
Fez-se noite em meu viver
Forte eu sou, mas não tem jeito
Hoje eu tenho que chorar”
– Travessia, Milton Nascimento.
Sempre imaginei que, se o céu espiritual existisse, muito provavelmente haveria uma tela passando os principais momentos de nossas vidas. Quando cheguei à capela celestial, do cemitério do Caju, na manhã do último sábado, dia 03/06, tive uma pequena visão desse provável “céu”, ao me deparar com uma pequena tela, posicionada na parte superior de uma das paredes, na qual passavam diversas fotos de um grande ser humano, artista e amigo, Algrin David. Infelizmente, ao olhar para baixo, tínhamos a certeza de que não estávamos no céu, tampouco num agradável sonho, mas estávamos, inacreditavelmente, no velório de um doce menino de 25 anos, que veio a falecer num infeliz acaso, quando entrou no mar do arpoador, no Rio de Janeiro, e só apareceu 6 dias depois, sem vida, na Praia do Forte São João, na Urca.
Quando recebi a notícia de que Algrin estava desaparecido e as circunstâncias de seu desaparecimento, tive vontade de partir o mar em pedaços, andar sobre as águas e encontrá-lo ainda com vida. Mas, conforme os dias foram passando e não era possível encontrá-lo em nenhum lugar, desejei ter o poder de voltar no tempo e impedi-lo de entrar no mar. Durante esses 6 longos dias, nada fazia sentido na minha cabeça. Só conseguia pensar em como Algrin era um menino super prudente, responsável e saudável, logo, a ideia de que ele teria entrado no mar e se afogado sem que ninguém se desse conta parecia algo completamente absurdo, mas, de acordo com as investigações, tudo indica que foi isso mesmo o que aconteceu: Algrin entraria no mar para nunca mais voltar.
Algrin era estudante da UFF (Universidade Federal Fluminense), autor e diretor do filme “Famélicos”, projeto de ficção que seria lançado ainda este ano pelo cineasta e retrata a difícil vida de jovens negros no mercado de trabalho brasileiro e como a fome atinge as famílias negras. Além de ser fotógrafo e já ter participado de diversos projetos audiovisuais em diversas áreas, o produtor de audiovisuais tinha planos de abrir uma produtora para que artistas negros pudessem viabilizar seus projetos artísticos. Algrin deixa mãe, padrasto, irmãos, primos, tios e amigos.
Me lembro do dia em que conheci Algrin. Estávamos num set de filmagem, éramos assistentes de direção de um projeto e a sinergia entre nós foi imediata! Os dias de trabalho fluíram muito bem e nos tornamos amigos. Algum tempo depois, Algrin me convidou para sua festa de aniversário, em sua casa, quando tive o prazer de conhecer seus familiares e demais amigos. Estávamos ali celebrando sua vida e seu ingresso na Universidade Federal Fluminense. Ele fez um discurso lindo, todos estávamos orgulhosos e felizes porque Algrin era um rapaz comprometido com a luta antirracista e faria a diferença no mundo, como de fato fez! Durante seu funeral não faltaram testemunhos de amigos e familiares relatando o quanto Algrin David era um menino muito especial. Como ele era um rapaz sensível, um artista comprometido, talentoso, um amigo com o qual se poderia contar sempre, um bom conselheiro, até de pessoas mais velhas do que ele. Eram tantas pessoas que queriam dizer coisas sobre Algrin que o tempo não foi suficiente para contemplar todas as falas. Uma das gratas lembranças que guardo de Algrin, foi o dia no qual fui vítima de racismo durante a gravação de um projeto, no qual Algrin era meu assistente de direção. Ele enfrentou, ao meu lado, as pessoas que cometeram o crime de injúria racial contra mim e cobrou que aquela situação fosse corrigida. Era um grande companheiro de trabalho, alegrava o ambiente e fazia todo mundo se sentir bem!
Em sua cerimônia fúnebre, lá estava eu, incrédula e chorando no fundo da sala, olhando as fotos que passavam na tela, quando de repente uma mulher veio me abraçar, com um sorriso amigável e uma força descomunal. Seus olhos brilhavam de tristeza, mas a sua postura era elegante, solidária e forte. Essa era Elisabete, mãe de Algrin David. Só havia estado com ela pessoalmente uma vez, celebrando a vida de seu filho, numa festa de aniversário. Então, estar ali, frente a frente com ela, no encerramento do ciclo da vida de seu filho, é algo de que jamais me esquecerei. Elisabete parecia uma força da natureza, cuidando de todos, que estavam profundamente abalados, sem deixar a energia cair. Ali pude ver de onde Algrin tirou a inspiração para ser alguém tão nobre e especial para tanta gente que teve a honra de conhecê-lo em vida! Como foi dito por tantos durante a despedida de Algrin, repito agora: dona Elisabete, obrigada por ter parido o Algrin! E acrescento, obrigada por tê-lo tornado um menino tão especial, devemos isso a senhora.
Algrin, todas as homenagens serão pequenas para honrar a tua passagem, mas aqui existem muitos corações que jamais esquecerão a tua existência. Você se foi, mas não antes de denunciar os filhos famélicos desta terra e deixar uma preciosa biografia, que orgulha seus amigos e família! Não estava na sua hora, todos concordamos com isso, você ainda tinha muito o que viver e mostrar ao mundo, mas assim aconteceu e você se eternizou, fez sua travessia, então, olhe por nós.
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