Marcados pelas atrocidades dos regimes totalitários do entre guerras e conscientes da impossibilidade de autossuficiência, nasce a convicção de que a violação à dignidade humana não deve ser concebida como questão doméstica do Estado, e sim como tema de relevância universal, como legítima preocupação da comunidade internacional.
Os Estados passam, então, a adicionar a sua estrutura político-soberana elementos de abertura e de cooperação mútua no plano internacional, substituindo o modelo tradicional de Estado Westphaliano1 pelo Estado Constitucional Cooperativo, que deixa de reivindicar o caráter absoluto da soberania para exercê-la de forma compartilhada, adequada ao novo cenário de interdependência entre os países. Nessa fase, na tentativa de normatizar universalmente a dignidade humana e criar um novo pacto social, os países vivenciaram processo acelerado de integração, resultando em modificações significativas no Direito Internacional.
Inicia-se, assim, forte movimento pela proteção e promoção dos direitos humanos no plano normativo internacional. A violação à dignidade humana torna-se legítima preocupação da comunidade internacional. Dada a necessidade de ação mais eficaz para garantir a integridade física e moral do indivíduo, impulsiona-se a criação sistemático-normativa de proteção e promoção global desses direitos, tornando possível a responsabilização do Estado (no domínio internacional) quando as instituições nacionais mostram-se falhas ou omissas na tarefa de proteger a dignidade humana. A partir de então, não mais se pretendeu apenas proteger arranjos e concessões recíprocas entre os Estados. A ambição passou a ser de garantir e implementar coletivamente, em âmbito também internacional, as obrigações dos países, que, por sua natureza, transcendem os interesses exclusivos dos Estados contratantes. 2
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A necessidade primordial de proteção e efetividade dos direitos humanos possibilitou, em nível internacional, o surgimento de uma disciplina autônoma ao direito internacional público, denominada Direito Internacional dos Direitos Humanos, cuja finalidade precípua consiste na concretização da plena eficácia dos direitos humanos fundamentais, por meio de normas gerais tuteladoras de bens da vida primordiais (dignidade, vida, segurança, liberdade, honra, moral, entre outros), contempladas em declarações, tratados e convenções internacionais.3
Com o processo de universalização dos direitos humanos, formaram-se mecanismos internacionais de proteção e promoção, contanto com dois âmbitos de aplicação: global e regionais. Os documentos produzidos pela ONU em prol da garantia e promoção da dignidade humana formam o sistema global de proteção dos direitos humanos, sendo que o campo de incidência destas normas não se limita a determinada região, podendo alcançar qualquer País da comunidade internacional.
O sistema global tem, assim, a meta máxima de proteger os direitos inerentes à dignidade do indivíduo e é caracterizado pela cooperação intergovernamental, muito embora essa dita cooperação venha sendo, de certo modo, mitigada, em virtude da obrigatoriedade inerente às normas jus cogens.4
A segunda fase da proteção global da dignidade humana passa a especificar o sujeito de direito em suas peculiaridades, estabelecendo documentos internacionais especiais de proteção às pessoas ou aos grupos sociais mais vulnerabilizados em seus direitos, realçando a importância dos princípios básicos da não discriminação e da igualdade material, que reconheça as diferenças, e que não alimente ou reproduza desigualdades. Percebeu-se que a proteção efetiva dos direitos humanos não demanda apenas políticas universalistas, mas específicas, endereçadas a grupos socialmente vulnerabilizados em seus direitos, enquanto vítimas mais atingidas pela exclusão. Invoca-se, assim, uma proteção específica e concreta, que transcende a concepção meramente formal e abstrata de igualdade.5
O sistema foi então ampliado com o advento de diversos tratados, tendentes a proteger grupos sociais mais vulnerabilizados em seus direitos, dentre eles a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD).6
Aprovada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em 13 de dezembro de 2006, a CDPD e seu Protocolo Facultativo erguem-se como um marco na garantia e promoção dos direitos das pessoas com deficiência, sendo um dos documentos mais aceitos pela comunidade internacional, contando com 175 ratificações até o momento.
Enquanto tratado internacional de direitos humanos, a Convenção prevê regras de conduta para os Estados, que assumem a responsabilidade de, internamente, implementar as normas internacionais estabelecidas, adequando a legislação interna e criando políticas capazes de intervir na realidade e modificá-la.7 Dessa forma, o propósito da Convenção não é o de criar novos direitos, e sim adaptar as normas previstas nos outros tratados de direitos humanos para o contexto específico da deficiência. É garantir o princípio da não-discriminação em cada um dos direitos já estabelecidos, a fim de se promover igualdade de oportunidades para as pessoas com deficiência.8
Assim, as normas da CDPD deverão orientar não só a revisão e formulação de leis, como também as decisões do Judiciário e os atos da Administração Pública. Nesse sentido, a discricionariedade do Poder Público em suas decisões recebe limite forte e determinado: o texto da Convenção. Não se trata mais de entregar a decisão ao Poder Executivo para que esse delibere dentro dos limites da lei. A lei sofreu reforço de caráter superior e que vincula todos os administradores públicos.
De forma geral, a CDPD pode ser vista como um marco regulatório de medidas para promover, proteger e assegurar às pessoas com deficiência o exercício pleno e igualitário de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais. Para tanto, o texto inclui uma série de princípios, direitos e garantias que, sem prejuízo de estarem dispostos em artigos autônomos, formam um núcleo normativo inter-relacionado que requer uma leitura sistemática e transversal para a sua compreensão e, precipuamente, para sua implementação efetiva.
A Convenção contempla uma lista de princípios gerais no propósito de orientar a efetivação dos direitos e garantias nela consagrados (art. 3). Dentre eles, destacam-se: respeito pela dignidade inerente à pessoa humana e autonomia individual; não discriminação; plena e efetiva participação e inclusão na sociedade; respeito pela diferença; igualdade de oportunidades; acessibilidade e o respeito pelo desenvolvimento das capacidades das crianças com deficiência. Além dos princípios, a Convenção adota um critério de classificação que agrupa os direitos e garantias nela consagrados em cinco âmbitos temáticos: direitos de igualdade, direitos de autonomia, direitos de proteção, direitos de participação e direitos sociais básicos.
Como determina a CDPC, é dever dos Estados-partes, a fim de que não sejam condenados ou sequer investigados pelos órgãos dos sistemas de proteção aos direitos humanos, que adequem suas legislações de forma compatível com o Direito Internacional dos Direitos Humanos, pois somente dessa forma, será concedida a primazia que os referidos direitos merecem no ordenamento jurídico estatal.
No caso do Brasil, mesmo conferindo status constitucional à CDPD, ainda há muito a ser feito pelo País, suas autoridades e pela sociedade para garantirem a plena e efetiva implementação do tratado. Em termos práticos, a Administração Pública não observa efetivamente os comandos da Convenção, as autoridades competentes nem sempre fiscalizam e o Judiciário, muitas das vezes, não confere ao tratado o seu verdadeiro alcance para assegurar o cumprimento das leis e a execução de políticas públicas para a concretização dos direitos das pessoas com deficiência.
Ainda mais tormentoso é o cenário político vivenciado pelo País nesse momento. Indo de encontro a toda ideia de desenvolvimento humano arquitetada pela Agenda 20309 e por outros órgãos e mecanismos de direitos humanos no plano internacional, é grande o risco de retrocesso na garantia e promoção dos direitos das pessoas com deficiência, especialmente no campo da educação, previdência e assistência social.
A realidade é que, não obstante todo aparato normativo que beneficia esse grupo social, a maioria dos Estados Partes ainda não adotou todas as medidas concretas em cumprimento de suas obrigações para assegurar às pessoas com deficiência a mais ampla e plena efetivação da Convenção e das Recomendações do Comitê da ONU sobre os direitos das pessoas com deficiência.
Felizmente, nesse contrafluxo generalizado de desmonte nacional de políticas públicas históricas inclusivas, os Estados Unidos da América (EUA) inovaram seu sistema de proteção de direitos humanos ao criar órgão direcionado a promover os direitos das pessoas com deficiência em escala internacional: seria como um órgão nacional colaborativo do sistema internacional. Com o objetivo de garantir visibilidade global, instituíram em 2020 Escritório Permanente de Direitos Internacionais das Pessoas com Deficiência, vinculado ao Departamento de Estado daquele País.
O Escritório de Direitos Internacionais das Pessoas com Deficiência tem, dentre seus objetivos, auxiliar governos nacionais a alavancar políticas de combate à discriminação, preconceito e abuso contra as pessoas com deficiência e a proteger os direitos e garantir a dignidade humana. Além disso, incentivar e auxiliar governos na elaboração e implementação de leis que façam valer a CPDP, bem como prestar assistência para organizações da sociedade civil em todo o mundo, capacitando-as na defesa dos direitos das pessoas com deficiência.
O Escritório também incentiva as empresas estadunidenses que operam no exterior a levar em consideração as pessoas com deficiência em relação às práticas de emprego, inclusive em suas políticas, programas e práticas de responsabilidade social corporativa. Ademais, o órgão representará os Estados Unidos em fóruns diplomáticos e multilaterais sobre o tema da deficiência.
Na atualidade, apesar de haver à disposição instrumentos que reconheçam direitos específicos, a ação do Estado Democrático de Direito não está sendo capaz de aniquilar novos contextos discriminatórios, já que vem contribuindo para uma proteção passiva da pessoa com deficiência em contextos isolados, ao invés da aplicação do princípio da inclusão e emancipação.10
O Brasil, que ainda precisa eliminar suas próprias barreiras e lutar contra o retrocesso de direitos, deve também repensar sobre a efetividade das políticas atuais a favor das pessoas com deficiência, sendo essencial arquitetar ações com base nas recomendações das Nações Unidas e nas boas práticas do direito comparado que estejam de fato garantindo a inclusão desse importante segmento social.
Para concretização dos direitos é necessário atos administrativos concretos e políticas/programas/ações públicas transversais/intersetoriais e simultâneas que garantam acesso às pessoas com deficiência aos serviços/ benefícios individualizados, bem como a todos os serviços e benefícios públicas destinados ao público em geral. Esforços devem ser empreendidos para tornar o ambiente o mais acessível possível, eliminando as barreiras existentes e criando as condições necessárias para que as pessoas com deficiência possam participar plena e efetivamente na sociedade e exercerem os seus direitos em igualdade de oportunidades com os demais.
Notas de Rodapé
[1]- O termo provém da chamada Paz de Westphalia, resultante da assinatura de um conjunto de tratados diplomáticos em 1648 que puseram fim à Guerra dos Trinta Anos (1618-48). A Paz de Westphalia marcou, em sentido mais amplo, o início do sistema laico de Relações Internacionais, na medida em que deu origem à estrutura legal e política das relações interestatais modernas. Reconheceu explicitamente uma sociedade de Estados fundada no princípio da soberania territorial, não intervenção em assuntos internos dos demais e a independência dos Estados, detentores de direitos jurídicos iguais, a ser respeitados pelos demais membros. (Dictionary of international relations, Londres: Penguin Books, 1998)
2- PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direitos Internacional Constitucional. Saraiva: São Paulo, 2012, p. 185.
3- MORAIS, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 4.ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 35
4- MARTINS, Ana Maria Guerra. Ob. cit., p. 121. Por Ius cogens ou Direito cogente entende-se: Direito imperativo. Corresponde ao ius strictum do Direito Romano, que se contrapunha ao ius dispositivum, isto é, o Direito que nascia da vontade das partes”. (PEREIRA, André Gonçalves; QUADROS, Fausto de. Manual de direito internacional público. 3. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1993, p. 277.)
5- PIOVASAN. Op. cit.
6- CALDAS. Roberto. Obrigações Gerais. In: Novos Comentários à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Presidência da República, 2014. Disponível em: http://www.pessoacomdeficiencia.gov.br/app/sites/default/files/publicacoes/convencao-sdpcd-novos-comentarios.pdf. Acesso 15.1.2022.
7- BARIFFI. Agustina Palacios. La discapacidad como una cuestión de derechos humano, Espanha, 2007. Disponível em: http://www.convenciondiscapacidad.es/Publicaciones_new/4_Libro%20Agustina%20Discapacidad.pdf. Acesso 15.1.2022.
8- ARAÚJO. Luiz Alberto. Princípios Gerais. In: Novos Comentários à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Presidência da República, 2014. Disponível em: http://www.pessoacomdeficiencia.gov.br/app/sites/default/files/publicacoes/convencao-sdpcd-novos-comentarios.pdf. Acesso 15-10-2017.
9- A Agenda de 2030 para Desenvolvimento Sustentável traduz-se em um plano de ação para as pessoas, o planeta e a prosperidade, devendo ser implementada até 2030. Assinada por mais de 150 líderes mundiais, buscou-se um comprometimento político por parte dos Chefes de Estado e Governos na construção de um futuro mais digno e gratificante para os indivíduos, combatendo-se a pobreza, a degradação ambiental e reduzindo-se as desigualdades. A Agenda é explícita ao estabelecer que, até 2030, o objetivo é garantir às pessoas com deficiência igualdade de acesso a todos os níveis de educação e formação profissional e instalações acessíveis e segurança no ambiente educacional (item 25); emprego pleno e produtivo (item8.5); transporte e prédios públicos acessíveis (item 11.2); inclusão social, política e econômica (item 10.2).
10- GIBBS, Dave. Social Model Services. In: Colin Barners e outros (Organiz.) Cambridge: Cambridge, 2004, passim.
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