Marco Aurélio Nogueira *
A poucos dias da ida de milhões de brasileiros às cabines de votação, não há festa cívica no país. Nunca antes tivemos um processo eleitoral tão insosso e despolitizado, tão vazio de elementos para que se entendam o mundo em que vivemos e o ciclo em que ingressaremos, sejam quem forem os próximos governantes.
Não vale a pena investir contra os políticos, ainda que a responsabilidade deles deva ser apontada. Talvez eles estejam sem forças, não tenham sabido reagir e se deixaram engolir pela pasmaceira geral. Pode ser que somente sejam o produto da prevalência de um modo de fazer política que se deleita em disputar a atenção dos mais pobres em troca de promessas ilimitadas de abrigo e proteção – um populismo atualizado e matreiro, mas nem por isso menos deletério. Embalado pela adesão generalizada das massas e das elites do país, esse modo de fazer política encurralou a oposição democrática, fazendo dela uma caricatura, um corpo sem pernas e sem cabeça, erraticamente em busca do tempo perdido.
O mal-estar que acompanhou a campanha não é um produto mecânico da má qualidade dos políticos nem uma falha das instituições. Tem dimensão universal, pode ser sentido em outras partes do mundo. A perda de confiança na política, o desinteresse da opinião pública pelos políticos, a sensação generalizada de que trabalham mal, que mais criam do que resolvem problemas – tudo isso parece entranhado na cultura da época. Estamos perante um problema que está além de responsabilidades pessoais ou institucionais.
Há vida aqui fora. Os problemas e as dificuldades se repõem sem cessar, agravando desníveis e desigualdades. A sociedade manifesta sua insatisfação e suas contradições de diferentes maneiras, mas sua voz não assume forma política, não consegue se unir nem definir com clareza o alvo a atingir. Faltam-lhe operadores e recursos organizacionais. A política entrou em estado de sofrimento, a representação parece levitar, como se não tivesse bases de sustentação.
É o preço que se está pagando pelo ingresso da humanidade numa nova fase do capitalismo, movida a velocidade, tecnologia, consumo, fluxos ininterruptos de informação, conectividade permanente.
No caso brasileiro, para complicar, o Estado e a política estão confundidos pelo cruzamento de modernidade tardia e condição periférica: ficamos excessivamente modernos sem deixarmos de ser pobres, desiguais e atrasados. A mistura desses dois universos é terrível. Embaça tudo. As instituições políticas se mantêm, mas perdem eficácia e qualidade. Soltam-se da sociedade e passam a afastar os cidadãos das decisões referentes à coletividade. Os eleitores flutuam, sem saber ao certo o destino real de seu voto e sem compreender a lógica do sistema eleitoral.
Os políticos, por sua vez, não se mostram à altura dos tempos. Estão sem estatura técnica e intelectual, lealdade ao povo e uma ideia de país. Vítimas não inocentes desse sistema, os partidos sobrevivem, mas não participam das eleições como forças ideológicas ou programáticas coesas, não se comportam como expressão de movimentos orgânicos de opinião. Reduziram-se à luta pelo poder.
Os bons parlamentares – sim, eles existem – não parecem possuir peso e articulação suficientes para dar às Casas Legislativas a expressão que precisam ter, nem para desfazer a imagem negativa que as cerca. Com isso os cidadãos ficam despojados de uma instância confiável de representação política e de processamento democrático de demandas e reivindicações.
A propaganda eleitoral acentuou a gravidade da situação. Mais uma vez, foi marcada pelo mais puro bestialógico. Teve alguma serventia na parte dedicada aos cargos executivos, mas foi patética no caso dos candidatos às Assembleias Legislativas e ao Congresso Nacional. Apresentou-os a contragosto, como personagens secundários, aprisionados em camisas de força que os transformaram em marionetes e ventríloquos. Não deram espaço para debates que valorizassem o trabalho legislativo e explicassem sua importância para a população, ou que ao menos indicassem ao eleitor a relevância que esse ou aquele candidato tem no partido a que está vinculado.
Vista como medida de alto impacto democrático, por facilitar a comunicação dos políticos com os cidadãos e abrir espaços para todos os candidatos, a propaganda eleitoral gratuita sofre as consequências de um efeito não desejado: quanto mais é controlada e formatada pelo marketing, mais escapa do discernimento dos políticos, mais os degrada e mais rebaixa o discurso político. Apequena a política, entregando-a a jogos de cena histriônicos, acusações bombásticas, revelações sensacionalistas, traições inusitadas.
A política, no fundo, ajustou-se às exigências da época: também ela se tornou “visual” e “imagética”, repleta de luzes e mercadorias. Ao fazer isso, passou a correr o risco de deixar de ser exatamente aquilo que mais se espera dela: um espaço de reflexão crítica sobre o Estado, de agregação cívica de interesses e expectativas, de firme confronto de ideias. Se a política não puder ser isso, se não privilegiar o debate público e não for uma espécie de viga que não se dobra nem à vontade dos poderosos nem aos hábitos passivos dos cidadãos, então se converte em mera luta pelo voto e em “gestão”. Ou seja, vira quase nada.
Para descobrir por que as atuais eleições foram tão sem graça podemos ponderar que, diante de propostas que não lhe falaram à razão, que oscilaram entre a autoglorificação, o radicalismo verbal abstrato e o tecnicismo gerencial, que exibiram candidatos desencarnados de partidos ou correntes de ideias, o eleitor optou pela acomodação. Em vez de terem criado condições para uma reflexão coletiva sobre o país e o mundo, as eleições empurraram o cidadão para um conservadorismo defensivo e meio alienado. Talvez isso nos ajude a entender o que sairá das urnas.
* Professor titular de Teoria Política da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Texto publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo. Reprodução autorizada pelo autor.
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