Há um encantador olhar meio abusado, meio destemido, na pequena mulher que encara a câmera fotográfica no centro da imagem cercada de homens engravatados. À sua frente, alguns vasos com bem cuidados arranjos de flores. Ela é Alzira Soriano, minha bisavó, a primeira mulher a exercer um cargo no poder Executivo na América Latina. Prefeita da cidade de Lajes, no Rio Grande do Norte. Um feito à época tão impressionante que Alzira Soriano foi parar nas páginas do New York Times.
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Era o dia 4 de janeiro de 1929 quando minha bisavó, Alzira, aboletou-se no meio desses homens. Todo o seu secretariado na prefeitura de Lajes era masculino. Mas a sua postura na foto não deixa qualquer dúvida, a parecer dizer: “A partir de agora, nesse mundo masculino da política, quem manda sou eu”. E assim fez Alzira Soriano. Misturando coragem e doçura, ela entrou para a história. E transformou sua família. Os Soriano Lago homens todos aprenderam, como na canção de Gilberto Gil, que suas porções mulheres são a porção melhor que trazem dentro de si. Aprenderam que a Mulher-Maravilha era do Rio Grande do Norte. Era minha bisavó. E aprenderam, a partir dela, que todas as mulheres são também Mulher-Maravilha.
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Sobre o que Alzira Soriano conquistou naquele 4 de janeiro de 1929, as melhores palavras são mesmo as delas, no seu discurso de posse. O que impressiona, neste Dia Internacional da Mulher, é como seu discurso feito há 93 anos, é ainda tão atual. E, mais do que isso, o que é assustador, como ameaças conservadoras, de extrema-direita, a todo momento operam para que haja retrocesso a partir dessa sua conquista.
“Determinaram os acontecimentos sociais do nosso querido Rio Grande do Norte, na sua constante evolução da democracia, que a mulher, esta doce colaboradora do lar, se voltasse também para colaborar com outra feição na sua obra político-administrativa”, inicia Alzira, com a disposição de dizer claramente, como hoje se costuma dizer, que “lugar de mulher é onde ela quiser”.
E ela segue mostrando que esse passo adiante era inevitável e sem possibilidade de retrocesso. “De outro modo, portanto, não poderia ser. As conquistas sociais, a evolução que ora se opera, abrem uma clareira no convencionalismo, fazendo ressurgir a nova faceta dos sagrados direitos da mulher”.
E minha avó-Maravilha, então, pede respeito. “Inovação estética não pode ser, O que se observa é a consciência elegante de uma conquista”.
“A prova eloquente de reconstrução político-social caracteriza-se pela minha eleição ao posto de prefeita deste município”, diz Alzira mais adiante.
Alzira Soriano avisa, então, que coragem não lhe falta. “Nem o momento é daqueles em que essa ousadia fosse fácil, porque, assim como o nosso pequeno mas laborioso e próspero estado volta hoje as suas vistas curiosas para município de Lajes, como campeão de uma iniciativa audaciosa, vejo que as vossas convergem para a obscura individualidade duma patrícia cujo mérito é o de não recuar quando a mandam para a frente”.
E assim fez Alzira Soriano. Seguiu em frente. Não cumpriu seus três anos de mandato porque eles foram tolhidos pelo golpe de Getúlio Vargas e ela não aceitou seguir, embora tenha recebido o convite para ser interventora. Depois da redemocratização do país em 1945, foi vereadora por dois mandatos. Chegou a presidir a Câmara de Vereadores. Sua pequena casa amarela no município de Jardim de Angicos (que então era um distrito de Lajes) é hoje um museu no sertão do Rio Grande do Norte a celebrar seu feito.
Mais de 90 anos depois, vivemos ainda um tempo que permite o surgimento de um “Mamãe Falei”. No qual ainda há homens capazes de admitir se aproveitarem da trágica fragilidade de um cenário de guerra para tirar proveito sexual de uma mulher. No qual ainda há homens capazes de comparar uma fila de mulheres desesperadas por uma saída como refugiadas – deixando para trás suas vidas, suas famílias e mergulhando na incerteza – à “fila da balada”.
Talvez possa parecer triste que as palavras ditas por Alzira Soriano há 93 anos ainda precisem se impor para dizer aos Arthur do Val do nosso tempo que o espaço conquistado pelas mulheres e o respeito que elas têm por merecer “inovação estética não pode ser”. Trata-se da inexorável “consciência elegante de uma conquista”. Que tem a coragem necessária mesmo para deixar de ser “elegante” se preciso for. Alzira está viva. Alzira está presente. Viva minha bisavó!
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