Dado o limitado espaço que o Congresso Nacional e a grande imprensa têm dado ao tema, julgo ser meu dever – e o de quantos militam na educação e prezam a democracia – manifestar-me. Afinal a função da educação é promover cidadãos livres e capazes de raciocinar com independência – sem necessidade de tutela. E o ensino da História nos previne quanto aos riscos das iniciativas do Poder em controlar as ideias e seu fluxo. A educação tem legitimidade para dizer verdades ao poder.
Do que se vê nos poucos artigos e reportagens que vêm aparecendo na imprensa a respeito da legislação proposta pelo governo, há fortes razões para alertar a sociedade e o parlamento a respeito dos perigos embutidos na mesma. Não há razão para açodamento. E há dezenas de exemplos de legislação de outros países sobre o tema, e neles a democracia não está sendo colocada em risco.
Inúmeros países possuem legislação específica para esse fim. Por exemplo, a França adotou uma lei em 2018 para combater a disseminação de notícias falsas na internet e que permite aos tribunais retirar conteúdo de redes sociais se considerarem que é "manipulador" ou "enganoso". A Alemanha aprovou a Lei de Execução da Rede de Informação em 2017. Esta lei exige que as empresas de redes sociais removam conteúdo ilegal, incluindo discurso de ódio e notícias falsas, dentro de um prazo específico. As empresas que não cumprem a lei estão sujeitas a multas elevadas.
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O Reino Unido aprovou a Lei de Segurança Online em 2021, que exige que as empresas de redes sociais removam conteúdo prejudicial, como discurso de ódio e conteúdo extremista, também sob pena de multas pesadas. A Austrália aprovou a Lei de Notícias e Código de Barganha em 2021, que inclui disposições para o controle do conteúdo em plataformas de redes sociais, permitindo que o governo australiano retire conteúdo se considerar que é prejudicial. Embora os Estados Unidos não tenham legislação específica para o controle de conteúdo de mensagens na internet ou redes sociais, as empresas de tecnologia são regulamentadas pela Seção 230 da Lei de Decência das Comunicações, que protege as empresas de responsabilidade pelo conteúdo publicado em suas plataformas pelos usuários.
Tudo isso para dizer que há razões, respaldo e espaço para legislar com clarividência e prudência sobre o tema. Mas em todos os casos citados, as salvaguardas estão bem estabelecidas. E em todos os casos o Poder Executivo fica de fora.
A França tem uma autoridade administrativa independente chamada Conselho Superior do Audiovisual (Conseil Supérieur de l’Audiovisuel – CSA), que é responsável por regular as emissoras de rádio e televisão e pode tomar medidas para garantir o respeito à legislação de mídia, incluindo a remoção de conteúdo ilegal. A palavra chave é “autoridade administrativa independente”. Na Inglaterra ocorre o mesmo, mas são órgãos independentes do Governo como o Ofcom e o ICO, supervisionados pelo Parlamento, que podem exercer essa função, depois de cumprirem um rigoroso processo e assegurar o direito de defesa, do contraditório e de privacidade.
Ademais, embora usando mecanismos diversos, as leis de diversos países, especialmente no âmbito da OCDE, tipicamente exigem que o regulador siga um processo claro antes de remover o conteúdo. As empresas de tecnologia têm o direito de contestar a decisão do regulador, e há procedimentos claros para recursos e revisões. A lei também estabelece salvaguardas para proteger a liberdade de expressão, garantindo que as opiniões legítimas e as críticas construtivas não sejam censuradas.
Em vários países essas leis também preveem que as vítimas de conteúdo prejudicial possam buscar reparação judicial contra as empresas de tecnologia responsáveis pela publicação do conteúdo. Dessa forma, as empresas de tecnologia ficam obrigadas a proteger os usuários, especialmente crianças e pessoas vulneráveis, contra conteúdo prejudicial em suas plataformas.
Em relação aos tipos de conteúdo considerados como "conteúdo prejudicial", esses variam de país para país, mas geralmente incluem discurso de ódio, notícias falsas, pornografia infantil e incitação à violência, entre outros. A definição precisa de conteúdo prejudicial é um aspecto crucial para garantir que a legislação não seja usada de forma arbitrária para censurar opiniões legítimas e restringir a liberdade de expressão. Como diferenciar boatos de notícias falsas? Exageros ou equívocos de interpretação de algo que foi dito por uma autoridade? Legislar sobre como andar na areia movediça é tão perigoso quanto caminhar nesses terrenos.
A realidade tornou necessário legislar sobre o controle de conteúdo na internet. Mas legislar resolve pouco e apenas arranha o problema de fundo – legislar está longe de ser uma solução completa para o problema do conteúdo prejudicial na internet.
E assim chegamos ao cerne da questão: se de um lado é preciso legislar, de outro não se pode deixar ao arbítrio do Poder Executivo decidir sobre o que considera como um atentado às instituições. Para isso já temos leis mais do que suficientes.
Num momento como este, volta à mente a história da Inquisição, que não se limitou a editar a lista dos livros proibidos, o famoso ou famigerado Index Librorum Prohibitorum. Mais próximo a nós, voltam como fantasma as histórias do nazismo e do fascismo – foi comendo pelas bordas que tanto Hitler quanto Mussolini promoveram o progressivo fortalecimento do Poder Executivo – atribuindo-lhe prerrogativas que levaram ao maior genocídio da humanidade. Tudo devidamente refletido no “Ministério da Verdade” descritas por George Orwell no livro “1984”, responsável pela propaganda para controlar a manipular a população. Lições da história…
Há muito o que fazer fora do âmbito da legislação. Há muito o que fazer no âmbito da educação. Como vimos acima, o ensino da História pode ajudar. O ensino correto da língua ensina as pessoas a avaliar criticamente as informações que encontram na internet pode ajudar a minimizar os danos causados por esse conteúdo. A educação do público em geral sobre como identificar e lidar com conteúdo prejudicial é igualmente importante. Essas são as estratégias mais importantes.
Cabe à sociedade exercer sua pressão e voz para que o Legislativo nos poupe de enveredar mais uma vez por esse descaminho que leva à censura, à perda da liberdade, e, ao fim e ao cabo, ao próprio senso de humanidade. Na década de 90 o grupo de pagode “É o Tchan” lançou a música “tapinha não dói”, considerada por muitos como controversa ou ambígua. Uma frase da letra dessa música se aplica como luva à nossa reflexão: “você pode bater com a mão aberta mas não pode deixar a marca da sua mão”. Com a proposta de regulamentação enviada ao Congresso Nacional o Executivo deixou claramente a marca de sua mão. Tapinha dói.
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para redacao@congressoemfoco.com.br.
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