por André Rehbein Sathler e Malena Rehbein Sathler*
Não, não se trata de um texto sobre confiança na democracia. Aquela que os pesquisadores tentam medir a partir de variáveis objetivas das características de uma democracia e dos anseios que enseja nas sociedades. Vamos falar sobre a posição da Fé, que entra no campo das crenças, em uma democracia. Antecipamos que é uma posição difícil mesmo, digna de equilibristas do Cirque du Soleil. Na verdade, para filósofos como Bertrand Russel, a questão segue irresoluta até nossos dias.
A exaustão provocada pelas guerras religiosas do final da Idade Média e início da Modernidade trouxe a separação entre Estado e igreja como elemento fundamental do sistema político. O Estado liberal que se seguiu passou a demandar das pessoas apenas que dividissem sua identidade entre aspectos públicos e privados. Ou seja, a Fé de cada um passaria a integrar a esfera privada, personalíssima, do indivíduo, e essa esfera deveria, idealmente, manter-se dissociada da esfera pública, na qual o próprio se apresenta como cidadão. Afinal, a junção dessas coisas já havia gerado muitas guerras, submissão e mau gerenciamento econômico nos estados antigos. E justamente disso era necessário livrar-se.
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Um pouco ilusória essa perspectiva. Afinal, o ser humano é integral. A mesma mitologia foi utilizada por algum tempo para se dizer que não se deve levar trabalho para casa. Como se fosse possível que a pessoa fosse uma em seu trabalho e outra em seus afazeres domésticos. Enfim, em que se pese a dificuldade da persona conseguir separar as instâncias, o Estado liberal trouxe, no nível do coletivo, o fato de que só deveriam ser aceitas as profissões de Fé que renunciassem à imposição violenta de suas verdades, seja para a sociedade em geral, seja entre seus próprios membros. Traduzindo, com um exemplo: a liberdade de crença (ter uma profissão de fé) não pode entrar em choque com a liberdade de se associar e de deixar de ser associado. Uma preocupação, e mesmo uma precaução, bastante pertinentes.
Habermas, outro filósofo, lembra que a consciência religiosa tem de assimilar o encontro cognitivamente dissonante com outras confissões e religiões. A Fé individual, fenômeno que se produz a partir de razão e emoção, precisa saber domar a emoção e dar espaço para o encontro racional com o diferente, sobretudo a Fé diferente. Mas também o diferente que vem da ciência – obrigar o ensino da origem das espécies a partir da história de Adão e Eva não deveria ter lugar nas sociedades contemporâneas. O ponto é a capacidade da Fé de se adequar às premissas do Estado Democrático – e essas premissas não estão fundamentadas em alguma moral sagrada, qualquer que seja.
Contudo, a democracia também deve tomar cuidado para não apresentar exigências excessivas àqueles que professam uma fé. Democracias pluralistas são lugares de muitas vozes. O respeito a essas vozes implica às vezes inação ou não-decisão: há assuntos que, caso decididos, lesionam àqueles que mantém determinadas convicções religiosas. A questão do aborto me parece ser um exemplo. Por mais que o assunto avance entre aqueles que compartilham do senso comum democraticamente esclarecido, o Estado liberal deve considerar a posição daqueles que têm fé como um veto suspensivo, esperando que a permanência da discussão traga algum aprendizado coletivo.
Aqui está o equilibrista, em sua corda bamba: respeito ao coletivo democrático, marcado pela autocompreensão secular da sociedade; contracenando com o respeito aos coletivos de determinadas profissões de Fé. Sobre o crente que se apresenta cidadão recai a exigência de uma consciência reflexiva capaz de compreender suas convicções em face do pluralismo. Sobre o Estado como instância curadora da cidadania, recai a exigência de tornar suas premissas igualitárias e sua moral universalista compatíveis com o respeito aos diferentes credos. Mas como fazer isso se paixão é parte inerente da política, a ponto de, ao desprezá-la, despolitizar-se a política? Recorrendo novamente a Habermas, ele diria: colocando como critério imperioso das discussões públicas a necessidade de argumentos comprováveis e cujo significado, em função disso, seja passível de ser compreendido por todos. Quase uma condição de laboratório, impossível de ser cumprida por humanos, mas gerada pelo que o excesso da dimensão religiosa na política havia feito às sociedades.
O discurso de Michele Bolsonaro nos atos de 25 de fevereiro acendeu alguns alertas na mídia e houve inclusive alguns que comentaram sobre a possível instalação de uma teocracia no Brasil. Apenas mais um sinal de quão mal resolvida está a questão. Sair da corda bamba tanto pode significar o fim do pluralismo e o retorno de formas renovadas de conjugação do poder estatal com o poder religioso – experiência que não traz boas memórias para humanidade; como pode representar a determinação do fim da liberdade de crença. Pois, se a crença se apresenta intolerante e focada em minar os fundamentos da democracia, a postura para com ela deve ser de intolerância – nos termos do Paradoxo da Tolerância. Vale aqui outra advertência de Habermas: nenhuma forma de emancipação pode se justificar normativamente em detrimento da democracia.
Na verdade, a possibilidade de emancipação do humano encontra-se na democracia. Justamente o regime que possibilita e permite e incentiva e defende que existam profissões de fé, as mais diversas. A Fé pode encontrar seu lugar no que a filósofa Chantal Mouffe nomeia como democracia agonística, na qual não se pode prescindir da paixão como constitutiva de qualquer relação de poder, mas também existem regras claras para os processos de decisão, bem como premissas básicas do que se quer para a sociedade. E, a partir disso, dar lugar e representação às mais diversas vozes da sociedade.
Bagunça total? Instabilidade dinâmica e conflito certamente. Mas a possibilidade de ascensão ao poder, democraticamente aberta a todos – o que é natimorto em teocracias e ditaduras em geral – e o respeito às regras e objetivos básicos da sociedade tendem a levar o conflito a mais e mais democracia. E por que então não fazemos logo isso e vivemos felizes? Porque sequer conseguimos definir as regras básicas da sociedade brasileira, que não reconhece na Constituição seu documento básico, nem sabe o que efetivamente se busca como coletivo.
Até aqui simplesmente alijamos – ao não preparar nossos cidadãos desde pequenos para agirem como tal – grande parte da sociedade de participar, com condições, desta definição. Se o estado não o faz, a religião já fez. Que a Fé saiba encontrar e manter seu lugar na democracia é, em si, uma profana manifestação de fé filosófica.
* Malena Rehbein Sathler é doutora em Ciência Política
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