Romi Bencke*
O dia 31 de outubro remete a duas celebrações. A primeira, para um grupo menor de pessoas, é o Dia da Reforma Protestante, que lembra o ato simbólico da fixação, em 1517, nas portas da igreja do Castelo de Wittenberg, das 95 Teses de Lutero. As teses criticavam e denunciavam as práticas de venda de indulgências por parte da Igreja Católica Apostólica Romana.
A segunda comemoração é o dia das Bruxas, ou Halloween, que cresce cada vez mais no Brasil. O Dia das Bruxas, embora tenha um caráter aparentemente não religioso, tem suas origens na cultura religiosa celta. Para os celtas, o Halloween era celebrado para marcar a passagem do final do verão para o início do outono, período mais escuro do ano. Acreditava-se que neste tempo de escuridão, característica do início do inverno europeu, as almas dos mortos regressavam para casa. Com o objetivo de enganar os espíritos dos mortos, as pessoas, para não serem reconhecidas, se fantasiavam e acendiam fogueiras para espantar os espíritos. Com o passar dos anos, a festa foi incorporada pelo cristianismo até chegarmos ao que hoje chamamos de Dia de Todos os Santos ou Dia dos Finados.
Mesmo que a reforma protestante não tenha relação explícita com as comemorações de Halloween, a história fez com que os caminhos de um e de outro se cruzassem. O dia 31 de outubro foi escolhido para a publicação das 95 Teses de Lutero justamente porque neste dia as pessoas iam às igrejas para orar pela alma dos mortos. O objetivo principal das 95 Teses era promover um amplo debate público sobre a manipulação, por parte do papa, dos bispos e sacerdotes, do temor das pessoas em não serem absolvidas de seus pecados e irem para o purgatório. O terror ao purgatório fazia com que as pessoas pagassem, em forma de indulgências, altas quantias em dinheiro ou bens para garantir um lugar cativo no céu, tanto para si mesmas, quanto para os entes queridos já falecidos. Esta prática de exploração econômica pela fé impactava diretamente as pessoas pobres, pois o medo fazia com que dessem à igreja até o que elas não tinham.
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O contexto social e religioso em que ocorreu a reforma era o da centralidade do poder político da Igreja Católica Romana na Europa. Os principados, em sua maioria, deviam lealdade e submissão à Igreja de Roma. O movimento impulsionado por Lutero é um dentre muitas outras tentativas anteriores que criticavam o poder abusivo da Igreja Romana. O livro “O Calibã e a Bruxa”, de Silvia Federici, apresenta uma ampla investigação sobre o tema. Este livro permite conhecer os inúmeros movimentos religiosos populares que se organizaram para reivindicar autonomia em relação à igreja, liberdade de pensamento, organização coletiva da vida social, igualdade entre mulheres e homens.
A diferença entre o movimento de reforma de Lutero em relação aos outros movimentos é que Lutero conseguiu o apoio de alguns principados que queriam romper com a submissão à igreja de Roma. Esta submissão restringia o desenvolvimento econômico e cientifico das regiões. A intencionalidade de Lutero era religiosa, mas como igreja e Estado formavam praticamente uma única entidade, a reforma desencadeou também um forte processo de transformação política e econômica. É por esta razão que a reforma protestante de 1517, com todas as suas contradições, representa um dos momentos impulsores para o que mais tarde seria a modernidade.
Martim Lutero não reivindicou o título de reformador e, nem mesmo, o título de fundador de uma igreja. Ele também não compreendeu sua teologia como a “teologia verdadeira”. Lutero foi um apaixonado pelo debate, razão pela qual me arrisco em dizer que sua teologia é resultado de discussões animadas que ele estabelecia com mulheres e homens de diferentes idades e estratos sociais. Trata-se, portanto, de uma teologia baseada no diálogo e construída de forma coletiva.
Aliás, o aspecto comunitário é central na perspectiva de Lutero e das demais pessoas que contribuíram com o movimento da reforma. É na comunidade que Cristo se revela, jamais em hierarquias eclesiásticas. Este senso de horizontalidade é, sem dúvida, característica relevante da reforma, porque deriva da compreensão da justificação por graça e fé e do sacerdócio geral de todas as pessoas que creem.
Se é pela fé em Jesus Cristo que todas as pessoas são justificadas, ou seja, perdoadas incondicionalmente, porque Deus ama sem impor condicionalidades, logo, todas participam do sacerdócio universal. Não há uma escala de hierarquização do sacerdócio geral, o que, sim, há são atribuições diferentes. Isso significa que algumas pessoas se envolvem em ministérios diferentes, que podem ser diaconal, da música, da educação, do pastoral, conforme o seu dom. O ministério pastoral tem funções específicas em relação aos demais ministérios. Ele não é o mais importante. Cabe ao ministério pastoral zelar pela vida comunitária, junto com o prebitério, celebrar os cultos e admoestar a comunidade quando ela se distancia da capacidade de orientar-se pelos valores do Evangelho, como misericórdia, perdão, amor incondicional, entre outros.
É da justificação por graça e fé que Lutero elabora a sua compreensão de liberdade cristã, muito baseado em Paulo, ou seja, foi para a liberdade que Cristo nos libertou, portanto, não estamos presos a tabus, diferenças de raça, gênero e outras barreiras criadas para dividir a sociedade. Uma das consequências desta compreensão é o direito de liberdade de consciência, fundamental para qualquer protestante.
Nas últimas semanas, muitos textos foram escritos sobre a reforma. Me chamou a atenção que muitos procuravam comparar o protestantismo chamado de “histórico” com o termo genérico “evangélico”. A maioria dos exercícios intelectuais que procuravam estabelecer diferenças entre um e outro, destacavam o aspecto racional do “protestantismo histórico” que não dialoga com a cultura religiosa baseada na emoção do evangelismo brasileiro. Com esta análise pueril se tenta explicar o crescimento dos evangélicos e o encolhimento numérico do “protestantismo histórico”.
Confesso que dois aspectos desta análise me incomodam. O primeiro é utilizar o termo histórico para diferenciar duas expressões do protestantismo que têm ênfases e aspectos teológicos diferentes entre si e que surgiram em períodos e contextos históricos distantes um do outro. Todos os fenômenos religiosos, sociais e políticos possuem historicidade. Na tradição hermenêutica, as pessoas não estão meramente na histórica, mas seu passado pessoal e social figuram em sua concepção de si mesmas. A consciência do passado é, portanto, constitutiva do eu.
Cresci em uma família de confissão luterana e aprendi que sou evangélica, porque a centralidade da minha fé é Jesus Cristo e os princípios que me orientam são os do Evangelho. Jamais compreendemos que a nossa forma de confissão luterana de viver o Evangelho melhor ou pior em relação às demais igrejas evangélicas presentes na cidade onde cresci. Também não era uma preocupação o fato de sermos uma comunidade pequena quando comparada com a comunidade católica ou com as demais igrejas. O que nos diferenciava, desde a perspectiva religiosa, era justamente a história e as ênfases teológicas e não as métricas. Com isso, quero dizer que se valer do termo ‘histórico’ para qualificar um protestantismo de origem diferente do atual movimento evangélico brasileiro é uma contradição em termos porque todos movimentos protestantes possuem historicidade. Por outro lado, se histórico é sinônimo de ‘velho’ e ‘antigo’, o conceito perde sua base teológica na hermenêutica e vira um expressão coloquial empobrecida. O contraste vulgar entre o novo que se comunica e o ‘histórico’ que possui raízes não poderia ser mais falso.
O segundo aspecto que me incomoda é a forma de classificar, às vezes, de forma pejorativa uma corrente do protestantismo, a saber, a luterana, presbiteriana, metodista, episcopal anglicana, entre outras, de “tradições muito orientadas pela razão” e, consequentemente, elitista. O que esta análise esconde, nas entrelinhas, é o desconhecimento em relação aos debates filosóficos que estabeleciam a relação entre razão e fé. Uma sem a outra distorce a realidade. Aliás, não há nada de novo em manifestações religiosas baseadas na emoção, elas antecedem no tempo a teologia natural que busca um conhecimento racional sobre Deus. O termo ‘logos’ no cristianismo se refere à palavra de Deus como exemplificação de sua agência na criação, no Novo Testamento e na pessoa de Cristo.
Por outro lado, a emoção muitas vezes se associa com uma certa euforia religiosa não congruente com a essência do cristianismo. A euforia religiosa leva a pessoa acreditar firmemente que está imbuída de uma certa revelação que lhe dá o poder sagrado de regular existências, perseguir o ‘mal’ a ser combatido por ser impuro, pecaminoso ou demoníaco.
Uma fé orientada única e exclusivamente pela emoção é retroceder ao pré-teológico em que a manifestação religiosa se reduz a algo anímico e extático. Dizer que a palavra de Deus e o conhecimento religioso precisa ser emocional, porque as classes trabalhadoras não têm condições de elaborar sua experiência de sagrado combinando a fé e o conhecimento do sagrado é um grande preconceito. A centralidade da emoção é que deveria ser problematizada, porque dá margem a uma certa dominação e manipulação, pois compreende-se que as pessoas não conseguem pensar por si mesmas.
Não nos esqueçamos que todos os movimentos de reforma, tanto os da Europa quanto os da América do Norte e, mais recentemente, os da América do Sul, floresceram junto aos grupos sociais economicamente vulnerabilizados. O movimento de Lutero, por exemplo, reuniu pessoas de centros urbanos e áreas rurais que não sabiam ler e não tinham trabalho. Uma das contribuições de Lutero foi justamente o direito à educação pública e ao ensino profissionalizante. Ele orientou que em todas as cidades fosse criado um caixa de auxilio mútuo para garantir que os filhos e filhas das famílias mais pobres pudessem frequentar a mesma escola das pessoas abastadas. Portanto, desvincular a experiência de fé do estudo e da capacidade de compreendê-la a partir das dúvidas e perguntas, próprias da razão, é rebaixar as pessoas evangélicas a massas que podem ser manipuladas.
*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site
Romi Bencke é pastora da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, graduada em Teologia pelas Faculdades EST (São Leopoldo), mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da UFJF. Em 2013 recebeu o prêmio de Direitos Humanos na categoria Promoção e Respeito à Diversidade Religiosa. Atualmente ocupa a função de secretária geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC) e integra o grupo coordenador do Fórum Ecumênico ACT Brasil.
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