Puxe uma cadeira, relaxe e me acompanhe. Vou cometer um atrevimento. Vou abordar o Novo Testamento exclusivamente na condição de roteiro, acima de crenças religiosas, de dogmas, de ateísmos ou agnosticismos. Um roteiro que tanto pode servir – e já serviu! – para teatro, cinema, ópera, dramatizações radiofônicas, representações populares e até para elaboração de folhetos de cordel. Num tempo de tanta intolerância religiosa, é ou não é um atrevimento?
A verdade é que o Novo Testamento é absolutamente insuperável como roteiro, desde seu início, com a narração delicada do drama natalino, como nas sequências seguintes até o desfecho, cada uma mais criativa, instigante e surpreendente do que a anterior. Todo profissional de roteiro sabe que, além do domínio de técnica apurada, precisa ter capacidade criativa capaz de oferecer do início ao final do “espetáculo” ingredientes de suspense, clímax e anticlímax, provocação e impactos emocional e psicológico fundamentais para garantir a atenção e fidelização da audiência.
No caso do Evangelho, o “roteirista” supriu tão exemplarmente as exigências mencionadas acima que até hoje não se conhece, em qualquer relato religioso semelhante, obra que supere ou que consiga, pelo menos ombrear-se a ele. Talvez justamente por isso, desde que foi lançado há mais de 2 mil anos, nunca saiu de cartaz.
O “roteiro” já começa surpreendente e instigante, com a narração do drama natalino. Que tem como personagem um menino pobre, filho de pais pobres, tão pobres que tiveram de trazê-lo ao mundo numa estrebaria entre vacas, burros, carneiros e seus respectivos odores de urina e estrume. Mas como é possível criar-se um super-herói que já nasce “por baixo”? Pois esta primeira surpresa elaborada pelo “roteirista” funciona tão bem que até hoje não saiu de cartaz. E vem sendo descaradamente copiada. Para não ir longe, Joe Shuster (1914-1992) e Jerry Siegel (1914-1996), criadores do Superman, igualmente deram-lhe uma origem humilde. Fizeram-no chegar à Terra a partir do ato desesperado dos pais, que o puseram numa nave que cruzou o espaço vinda de Kripton, planeta que estava prestes a explodir. Na Terra, o menino seria adotado não por um rei ou um imperador, mas por uma família de fazendeiros… pobres.
Na trajetória pela Terra, de forma semelhante, o menino Jesus que não teve direito nem a um berço teve educação doméstica, não frequentou escolas, e tudo o que aprendeu foi com o pai carpinteiro e com Maria, uma simples dona-de-casa. Se o “roteirista” quisesse, poderia tê-lo feito nascer em berço de ouro, mas fez exatamente o contrário. E funcionou. Tão bem que, sabe-se lá por artes do quê, um dia o menino foi encontrado dando aula… aos sábios do Templo!
Atenção que vou cometer uma heresia: Jesus pode ser considerado, sim, uma espécie de super-herói. Mas um super-herói diferente, que não exibe músculos poderosos nem usa fantasias espalhafatosas. E, se parece não saber voar, não tem problema: é capaz de… andar sobre as águas! Ciente de seu lugar na sociedade da época, nunca foi visto disputando espaço com os poderosos, com os quais sempre manteve prudente distância. Tão assim que ele próprio estabeleceu um limite em relação a eles, ao afirmar: “a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Na condição de simples ser humano, certa feita encheu o saco e expulsou a chicotadas um bando de mercadores que se utilizavam indevidamente do sagrado espaço do templo. Ao mesmo tempo, bem-humorado e de bem com a vida, foi capaz de garantir a continuação de uma festa de casamento ameaçada de acabar por falta de bebida: transformou água em vinho e… a farra prosseguiu! A opção pelas pessoas fracas e desprovidas ficou clara quando o “roteirista” colocou o personagem numa posição de pura compreensão com as atividades da prostituta Maria Madalena, a quem Jesus não condenou mas, ao contrário, acolheu e tratou com o mais absoluto respeito. Bem que poderia ter-se rebaixado a uma ação de moralismo barato, mas fez exatamente o contrário. “Mas como é possível que faça uma opção preferencial pelos pobres, se poderia, com seus poderes, estar convivendo e usufruindo as benesses da riqueza e da opulência?”
Pois é. Além do que o Evangelho não registra nenhum momento de sujeição de Cristo aos poderosos. Seus, digamos, “super-poderes”, nunca foram utilizados para reunir riqueza ou poder para si ou para quem quer que seja. Mas usou os mesmos poderes para ressuscitar Lázaro, um homem do povo, por quem se compadeceu. Tal como mandou os pescadores pobres, que não tinham conseguido pescar coisa alguma, lançarem novamente as redes ao mar e elas voltaram pesadas de pescado, para admiração geral.
Ao “roteiro” não faltam façanhas como curas de cegos e paralíticos, multiplicação de pães e até mesmo a cura de uma mulher que corria risco de morte porque estava perdendo sangue menstrual incessantemente.
Um dos aspectos mais sensacionais do “roteiro” é que, fora as “façanhas” que poderiam ombreá-lo a um personagem tipo “super-herói”, Jesus se comporta como um homem comum, com fraquezas, dúvidas e tristezas. Não há como largar narrativa tão envolvente, e que vai exatamente ao contrário de qualquer relato épico. O que fica muito claro logo nas primeiras linhas do Evangelho de João, quando lembra: “no início, era o verbo”. Ou seja: Jesus é o verbo… em forma de carne. O verbo “encarnado”. Com isso, o leitor do “roteiro” é informado de cara que grandes e arrebatadores acontecimentos estão vindo por aí. E ele que prepare o coração. Uma característica essencial a um bom roteiro é a criação das expectativas que prendem a atenção da audiência. No horto das Oliveiras, por exemplo, depois da ceia, Jesus pôs-se a orar mas foi tomado por um inexplicável temor, um grande desgosto, como diz São Marcos. Nada mais humano do que… depressão, não é? Nos dias atuais, seria aconselhado a buscar um terapeuta. Mas, como assim um super-herói, e divino, precisando ainda de terapia? Pois é…
Qualquer manual de roteiro traz uma lista básica dos ingredientes que não podem faltar. Grosso modo, o roteiro, da construção dos personagens ao relato, precisa ser simples para que o produto – filme, série, dramatização para vídeo, áudio, comercial de tv etc. – seja entendido facilmente, “de primeira”, como se diz. Depois, tem de conter um ou vários fatos inesperados: clímax e anticlímax. São eles que garantem outro ingrediente essencial: a emoção, que segura a audiência. E, por último, entre outros ingredientes que não vale a pena tratar aqui, um bom roteirista deve dominar as técnicas do storytelling, palavra de origem inglesa que, de forma resumida, significa a arte de contar histórias com uma narrativa envolvente. Um exemplo bem nosso: no Nordeste brasileiro existem muitos “storytellers” geniais – os autores dos folhetos das histórias fabulosas da literatura de cordel. Dispondo apenas da voz e da viola são capazes de manter a audiência em suspense por horas inteiras, do início ao fim da narrativa.
O Novo Testamento contém todos os ingredientes acima mencionados. E, como toda narrativa religiosa, contém também promessas de paz interior, longevidade, vida eterna e bem-aventurança. Um show de roteiro! Não teria como não dar certo. A Academia de Ciências Cinematográficas de Hollywood com certeza premiaria a narrativa do Novo Testamento na categoria de Melhor Roteiro. O personagem central é consistente e forte sobretudo por uma característica criada pelo “roteirista” que o diferencia de todos: é homem e, ao mesmo tempo, é Deus. Se a empatia com Deus pode ser complicada, pois ninguém teria coragem de comparar-se a “Ele”, com o “homem” Jesus Cristo a identificação é imediata. Além disso, o roteiro é trepidante o tempo todo. Jesus enfrenta e vence o próprio Demônio, recusando-se ao pedido dele para transformar pedras em pães, por exemplo. Além disso, o “roteirista” não perde tempo com detalhes inúteis como dizer como o personagem ganha dinheiro para se manter, se tem ou não casa pra morar, como obtém recursos para se vestir, o que gosta de comer etc. Tal como qualquer famoso personagem de ficção. Alguém sabe qual é o prato preferido do Superman? O homem de aço faz cocô e xixi como todo mundo? Apara as unhas? Corta o cabelo? Lava as próprias roupas? Qualquer semelhança com um certo Jesus Cristo não é mera coincidência. A diferença é que a narrativa do Novo Testamento é mil vezes mais criativa e envolvente do que qualquer outra. Estava fadada mesmo ao sucesso.
Já na etapa final, entra numa espiral vertiginosa de emoções com o personagem central sofrendo toda sorte de atrocidades e humilhações. Parece que tudo vai terminar mal. Jesus é traído, preso, torturado. Sofre as mais infames humilhações, inclusive a de ser “coroado” com o título de Rei dos Judeus. Uma coroação de araque, porque a coroa é… de espinhos! Até sofrer o suplício máximo: a morte de cruz. Sim, o “herói” morre no fim. E pouco antes de morrer se assume mais humano do que nunca, ao questionar o próprio Deus: “Pai, pai, por que me abandonaste?”
A narrativa poderia bem acabar aí, num “bad end” parecido com o de filmes famosos que terminaram com finais tristes, como Casablanca, Beleza Americana, Coração Valente, Titanic, Central do Brasil e tantos outros. Mas não. Quando tudo estava na casa do sem jeito, o “roteirista” do Evangelho dá um freio de arrumação na trama e muda espetacularmente o final, fazendo o “herói” ressuscitar num incrível e inesperado happy end. Ou seja: o roteiro começa surpreendente e termina mais surpreendente ainda. Tem ou não tem todas as condições para ganhar fácil o Prêmio de Melhor Roteiro? Ah, um aviso. O filme estreia no dia 25 de dezembro. E termina no Sábado de Aleluia. Os ingressos são gratuitos, é só chegar e aproveitar.
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