Clarisse Goldberg e Michel Gherman *
Mais uma vez, em plena pandemia da covid-19, com o Brasil escalando o triste ranking mundial de número de mortos, manifestantes favoráveis ao presidente Jair Bolsonaro desafiam a necessidade de isolamento e saem às ruas, bradando slogans cada vez mais próximos da exigência de um golpe militar. Os mais violentos chegaram a agredir jornalistas que executavam seu trabalho e enfermeiros demandando melhores condições de trabalho para enfrentar o coronavírus.
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E mais uma vez a bandeira de Israel tremula ao lado da bandeira brasileira. Desta vez, porém, a coisa foi muito mais longe: a bandeira de Israel não ficou restrita aos manifestantes. Ela, ao lado da bandeira dos Estados Unidos, subiu a rampa do Planalto com a conivência do presidente, disputando espaço com os símbolos nacionais brasileiros. A medida ofendeu norte-americanos, israelenses e, principalmente, cidadãos brasileiros de todas as origens e confissões, civis e militares. Altos oficiais chegaram a comentar na mídia que se trata de um ataque à soberania nacional.
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Na verdade, é um ataque a diversas soberanias. Para começar, colocar as três bandeiras no mesmo plano no símbolo máximo do poder político do país representa, simbolicamente, hipotecar, de forma subserviente, parte de nossa autonomia nacional a dois outros países – aliás, sem que qualquer um deles o tivesse pedido. O gesto, combinado à fala do presidente, dizendo que está “no limite” e exaltando o suposto apoio dos militares, parece mirar no apoio das duas outras bandeiras a uma aventura golpista.
No que diz respeito à bandeira de Israel, erguida inadequadamente pelos manifestantes bolsonaristas desde a campanha eleitoral, ela tem pouco a ver com o país representado e, muito mais, com a identidade política e, por vezes, religiosa, do público do presidente. Um presidente que se dirige oficialmente ou por meio de fake news, apenas a esse público, cada vez mais rarefeito.
PublicidadeA pequena Israel é uma sociedade complexa. Provavelmente os manifestantes não tenham consciência do peso das liberdades individuais naquela sociedade. Não sabem que o aborto é legalizado, e que o movimento LGBT em Israel é um dos mais poderosos do mundo. Também não sabem que o país, ainda que chore mais de duas centenas de mortos, está conseguindo controlar a duras penas a covid-19 graças a um isolamento rigoroso – o mesmo isolamento que eles desafiam de forma irresponsável, com suas bandeiras verde-amarelas e azul-brancas.
Mas por que tanta insistência nas bandeiras de um país com pouco mais de nove milhões de habitantes – minúsculo diante dos 200 milhões de brasileiros? A Israel sequestrada pela extrema-direita brasileira é branca, armada e cristã. Visa a assegurar ao público do presidente o apoio dos supostos valores milenares de uma civilização judaico-cristã. Reflete a parcela mais perversa da sociedade israelense: a que exclui os cidadãos árabes – 20% da população – assim como os judeus seculares e progressistas. Trata-se de um espelho azul e branco do núcleo mais duro de apoio ao governo brasileiro.
Para os pouco mais de cem mil brasileiros de origem judaica, a ação perpetrada no final da semana em Brasília representa ainda outra ofensa. Ela insiste em apresentar um pretenso apoio da comunidade judaica a Bolsonaro. E, mais uma vez, coloca essa pequena comunidade, de forma despropositada, no centro da política brasileira.
A coletividade judaica brasileira é multifacetada. Alguns segmentos, principalmente empresariais, de fato apoiam o presidente desde sua campanha eleitoral. Mas é crescente o número daqueles que sentem seus símbolos usurpados em nome de referências mais parecidas a fake news bíblicos, para beneficiar um governo cada vez mais distanciado da realidade – o coronavírus que o diga – e da ética judaica de tolerância e humanismo.
É dando voz a esses setores e a todos os que se sentiram ofendidos pelo ato em Brasília – seja em sua honra nacional, seja em sua ética religiosa –, que dizemos: não em nosso nome!
*Clarisse Goldberg é psicóloga, jornalista e diretora do Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel”
Michel Gherman é professor da UFRJ e diretor do Instituto Brasil Israel (IBI)
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