Dono de uma propriedade bucólica no norte da Áustria, na fronteira com a Eslovênia, o eurodeputado Thomas Waitz dedicou boa parte dos seus 50 anos de idade à causa ambiental. Apicultor e produtor orgânico, o copresidente do Partido Verde europeu esteve no Brasil em agosto, para discutir com autoridades e representantes da sociedade civil, o acordo da União Europeia com o Mercosul, que aguarda ratificação de ambos os lados desde 2019, após mais de duas décadas de muita negociação.
De passagem por Brasília, Waitz falou com exclusividade com o Congresso em Foco. Para o austríaco, o presidente Lula tem razão ao criticar as exigências da União Europeia, principalmente na questão ambiental, para concluir o acordo. Na avaliação dele, o tratado proposto pelos europeus está desequilibrado, em prejuízo do bloco sul-americano, composto por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. E, para que o acordo saia do papel, a União Europeia terá de ceder em suas exigências.
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“Precisa ceder nos processos de licitação pública. Precisa incluir no acordo a possibilidade de o Brasil acrescentar critérios adicionais que favoreçam a economia local, mas que permitam também o desenvolvimento social, e acertar aspectos ambientais. Também está faltando no acordo um compromisso claro de transferência de tecnologia na industrialização do país”, avalia o deputado.
Em agosto, o presidente Lula criticou o que chamou de “neocolonialismo verde” durante a Cúpula da Amazônia em Belém. O líder brasileiro se referia a práticas adotadas por países ricos, como o veto ou a taxação de produtos nacionais, como retaliação no caso de não cumprimento das condicionantes ambientais impostas por eles.
“Dizer que, se você não segue nossos princípios, não vai poder fazer negócios com a gente soa arrogante. Compartilho essa crítica de vocês. A maneira correta seria dizer ‘vamos sentar juntos, vamos ajudar o Brasil a desenvolver na direção para a qual precisamos caminhar'”, considera Thomas Waitz, que divide a presidência do Partido Verde na Europa com a eurodeputada francesa Mélanie Vogel.
Meio ambiente
Para Waitz, o Brasil dá passos largos na retomada das políticas ambientais desde o início do governo Lula, com a recomposição do esqueleto institucional que havia sido destruído na gestão Bolsonaro. Segundo o deputado, os países ricos precisam ampliar o financiamento ambiental devido aos estragos que causaram ao mundo com o uso de combustíveis fósseis.
“Grande parte da nossa riqueza foi construída com nossos combustíveis fósseis. Agora percebemos que temos causado problema grande para o mundo. A União Europeia não pode simplesmente pedir aos países do sul global que consertem isso pra gente. Em vez disso, precisamos assumir o compromisso de contribuir ativamente para o financiamento climático.”
Mas o financiamento, ressalta ele, é só um lado de questão. “O outro lado é a implementação séria. A diferença é que o Brasil pode ter a maioria das leis no papel, mas muitas vezes falta implementação. Isso é um dos principais pontos de preocupação para a Europa. Precisamos estar convencidos de que o dinheiro vai ser efetivamente usado para a causa correta, que vai ter efeito e não acabará perdido. Precisamos convencer os países europeus que o Brasil está seguro para usar esses recursos corretamente”, defende.
O líder do Partido Verde na Europa reconhece que o governo Lula enfrenta certas limitações na área ambiental por causa da ampla coalizão política que levou à sua eleição, que reúne, além da esquerda, partidos de centro e direita, inclusive setores do agronegócio. Ele acredita, no entanto, que é possível transpor essas barreiras. “Estou convencido de que, se houver vontade política suficiente do governo brasileiro, ou se a realidade política de uma ampla coalizão permitir, essa disposição política será expressa.”
Acordo arrastado
Em negociação desde 1999, o acordo de livre comércio entre União Europeia e Mercosul está em fase de revisão. O Brasil, que preside o Mercosul e o G20 no momento, espera concluir as negociações até dezembro. Houve um acordo preliminar em 2019. O tratado, no entanto, precisa ser acordado pelas autoridades dos dois blocos e pelo Congresso Nacional de cada país que os integram. Mas um documento adicional incluído pelos europeus tem virado um complicador. O texto prevê sanções em caso de descumprimento de metas na questão ambiental. Para Waitz, o acordo é anacrônico, segue diretrizes neoliberais dos anos 90, tende a trazer poucos benefícios para os integrantes do bloco sul-americano e ignora as novas políticas ambientais.
Criado em fevereiro de 2004 em Roma, o Partido Verde europeu provém da fusão de 32 legendas ecologistas nacionais de 29 países, inclusive quatro não membros da União Europeia (Suíça, Rússia, Geórgia e Ucrânia), e transita entre a esquerda e a centro-esquerda no espectro ideológico.
Veja os principais pontos da entrevista de Thomas Waitz:
O Brasil e a guerra entre Rússia e Ucrânia
“A gente queria que Lula criticasse a Rússia pela guerra ilegal contra a Ucrânia. Em geral havia entusiasmo com a integração do Brasil. Regimes autoritários estão se unindo no mundo com certo sucesso. Expectativa era e ainda é de ter uma nova base de comunicação, negociação e cooperação. Essa expectativa se realizou com a reconstrução das políticas ambientais. Mas há certa decepção com a posição do governo Lula sobre a invasão da Ucrânia. Lula não ficou claramente ao lado do Ocidente democrático. Visitou a China, não usou palavras fortes para condenar a guerra. Investiu nos Brics, não colaborando nas sanções à Rússia, mas entendo que esses tópicos dizem muito mais a nós europeus. Não necessariamente à sociedade brasileira.”
Acordo desequilibrado
“Esse acordo segue a lógica neoliberal dos acordos de livre comércio dos anos 90. É claramente desenhado para seguir a trilha de uma abordagem extrativista muito antiga. Une a abordagem da indústria europeia, abrindo novos mercados. Na atual forma está muito desequilibrado. Isso pode reforçar os problemas existentes no Brasil sobre a agricultura de escala industrial, a oligarquia agrícola. Não contribuiria para a maior industrialização do Brasil para o crescimento de uma classe média mais forte ou para o crescimento da riqueza da população, mas de uma parcela muito pequena, uma elite. Não achamos que este é o caminho a seguir.”
Críticas de Lula ao tratado
“Existe necessidade urgente de unir forças para lutar contra a perda da biodiversidade e o aquecimento global. A crítica do Lula é válida em relação à maneira que a União Europeia formula suas condições. Eu reflito sobre isso a partir da minha própria retórica. Com toda história que temos na Europa, se a maneira como abordar um país importante do sul global, como Brasil, não seria uma abordagem de cooperação comum entre nós, oferecer apoio financeiro e transferência de conhecimento para tentar unir quanto possível aspectos social e ambiental. Dizer que se você não segue nossos princípios não vai poder fazer negócios com a gente soa arrogante e compartilho essa crítica de vocês. A maneira correta seria dizer vamos sentar juntos, vamos ajudar o Brasil a desenvolver na direção para a qual precisamos caminhar.”
Financiamento europeu
“Acredito que a União Europeia e os estados europeus precisam assumir responsabilidade. A nossa indústria com combustíveis fósseis tem causado a maioria dos problemas. Grande parte da nossa riqueza foi construída com nossos combustíveis fósseis. Agora percebemos que temos causado problema grande para o mundo. A União Europeia não pode simplesmente pedir aos países do sul global que consertem isso pra gente. Em vez disso, precisamos assumir o compromisso de contribuir ativamente para o financiamento climático. O financiamento é só um lado de questão. O outro lado é a implementação séria. A diferença é que o Brasil pode ter a maioria das leis no papel. Mas falta implementação. Isso é um dos principais pontos de preocupação para a Europa. Precisamos estar convencidos de que o dinheiro vai ser efetivamente usado para a causa correta, que vai ter efeito e não acabará perdido em estruturas que não vão entregar. Precisamos convencer os países europeus que o Brasil está seguro para usar esses recursos corretamente.”
Esforço do governo brasileiro
“A realidade legal e jurídica existe. As leis estão no lugar. As instituições responsáveis pela aplicação estão sendo reconstruídas. Vemos esforço do governo. Há muitos sinais positivos de que o Brasil é relativamente desenvolvido em termos de estrutura social, democrática e institucional. Estou convencido de que se houver vontade política suficiente do governo brasileiro ou se a realidade política de uma ampla coalizão permitir que essa disposição política seja expressa.”
Brics
“Os Brics são um instrumento bem-sucedido para o Brasil e a Índia levarem sua voz para o norte global de forma sólida. Diplomaticamente, o Brics é um sucesso. o fato de não haver consequência para a Rússia nos Brics é uma preocupação. O regime de Putin é brutal, de criminosos de guerra. Isso prejudica a visão diplomática do governo Lula na União Europeia. Brics também são uma extensão dos interesses da China É difícil prever se isso pode causar desenvolvimento positivo. É importante que os países do sul global defendem seus interesses de forma sólida e chamem o norte global para que assuma suas responsabilidades e exija igualdade e justiça. Ampliar os Brics pode fortalecer essa voz. mas não tenho bola de cristal para ver o futuro.”
Desafios de Lula
“Temos consciência de que a coalizão que elegeu Lula é muito ampla. Tem setores da indústria e do agronegócio. Sabemos que não há maioria constante na Câmara nem no Senado. Temos consciência de que Lula tem algumas restrições para mostrar grandes ambições, ser rápido em cumprir suas promessas. Como somos políticos experientes, sabemos que esses limites precisam ser manejados.”
(Tradução: Cristiana Coimbra e Maya Johnson)
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