Morreu Desmond Tutu, o incansável lutador pela liberdade dos negros da África do Sul e que levou ao fim o regime do apartheid. Trata-se de mais uma dessas raras e carismáticas figuras, cujas vidas são capazes de transformar o seu tempo e deixar marcas indeléveis de sua passagem na Terra.
Como todo grande homem, Tutu era dotado de uma série de atributos que ele cuidadosamente aprimorou e colocou a serviço de uma causa – e depois, de várias outras. Muito de sua trajetória lembra a de Mahatma Gandhi, que liderou o fim do Império Britânico na Índia e que acelerou o final do imperialismo britânico no resto do planeta. No Brasil, tivemos D. Evaristo Arns, no front político, e irmã Dulce, em seu apostolado em favor dos pobres. Cada um com seu carisma, seu estilo, suas causas.
Em comum: nenhum tinha medo de dizer a verdade. E dizê-la aos poderosos, da forma como só pode e deve ser dita por quem não tem nada a pedir, a temer ou a perder. Mas não é só dizer, é repetir, articular, insistir incansavelmente, aceitar compromissos provisórios como caminho para chegar aos objetivos.
Como Luther King, Tutu não hesitou em colocar a sua igreja e o seu púlpito a serviço da causa, e, como King, esbanjava, com estilo, sua extraordinária capacidade retórica, vocal e de comunicação corporal.
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Como Gandhi, adotou sem transigir o princípio da não-violência. Foi mais longe e não hesitou em apoiar sanções contra o regime político de seu país. Como também não hesitou em romper com seus proeminentes ex-aliados do Partido do Congresso Nacional Africano, que, a seu ver, traíram a causa e acabaram se envolvendo em escândalos de corrupção.
A história saberá destilar as importantes contribuições de Desmond Tutu para a luta pela liberdade. Uma delas foi a sua liderança na Comissão de Verdade e Reconciliação, inaugurando um novo princípio de justiça, a justiça restaurativa, e não meramente uma justiça retributiva. Ele se dedicou a restaurar a dignidade das pessoas no contexto do diálogo político e não à busca de indenizações em dinheiro. Não há dinheiro que pague o mal que foi feito. E só uma mudança de atitude poderá abrir caminho para a boa convivência.
No apagar das luzes de 2022 e num mundo tão sofrido e tão injusto quanto o nosso, especialmente no Brasil, soa contemporânea e oportuna a voz de outro personagem carismático, a jovem Anne Frank, quase ao final de sua curta trajetória: “Vejo o mundo se transformando aos poucos num deserto, ouço se aproximar o trovão que um dia nos destruirá. Sinto o sofrimento de milhões. Apesar disso, quando olho para o céu sinto que tudo irá mudar para melhor, que essa crueldade (no caso, o Holocausto) irá acabar e que a paz e tranquilidade será restaurada”.
Às vésperas de um novo ano, é essa crença inabalável no poder da palavra e do diálogo que faz surgir gigantes como Desmond Tutu e a esperança de dias melhores.
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