Julio Roberto de Souza Pinto *
Desde há algum tempo, mais precisamente desde o fim da década de 1960 e início da década de 1970, o sistema-mundo moderno tem entrado em crise.
E não estamos falando aqui de uma dificuldadezinha que possa ser resolvida a partir do interior do próprio sistema. Tudo indica que entramos num colapso do sistema.
Senão vejamos. O sistema-mundo moderno, ao longo dos últimos séculos, tem-se escorado em três pernas: uma economia-mundo capitalista, que se sustenta na constante acumulação de riqueza; um sistema interestatal (internacional) regido por uma potência hegemônica; e uma geocultura liberal centrista, que mantém as outras duas pernas e, por conseguinte, todo o sistema funcionando.
Pois bem, a economia-mundo capitalista vive uma longa fase de estagnação e recessão desde 1970, após o que talvez tenha sido a mais vigorosa fase de expansão da economia mundial, iniciada em 1945. Observa-se uma tendência, de longo prazo, de aumento nos custos de produção (salários, infraestrutura, carga tributária/despesas públicas), apesar dos esforços neoliberais de congelamento dos salários, de externalização dos custos de infraestrutura (transporte, tratamento dos resíduos tóxicos etc.) – na verdade, transferência desses custos para o Estado e, por extensão, para os contribuintes/consumidores – e de desmonte do Estado do bem-estar social. O aumento do custo de produção, combinado com a dificuldade crescente de garantir o monopólio ou quase monopólio dos produtos, tem resultado no encolhido dos lucros e tem levado grande parte dos empresários a lançar a sorte na especulação financeira, onde sabidamente poucos ganham e muitos perdem.
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O sistema interestatal (internacional) também vive turbulências sem precedentes nos últimos tempos, com o aumento exponencial dos conflitos e da violência. As potências do Atlântico Norte, lideradas pelos EUA desde o fim da Segunda Guerra Mundial, vêm perdendo o poder hegemônico sobre o mundo, e novas potências – não ocidentais – têm emergido ou re-emergido, estabelecendo entre si relações econômicas, políticas e culturais que, pela primeira vez nos últimos cinco séculos, não são intermediadas pelas potências ocidentais, escapando, por conseguinte, ao seu controle.
E, o que é igualmente grave: desde a Revolução Mundial de 1968 testemunhamos a crescente perda do poder de convencimento do discurso liberal centrista que dava ligadura a todo o sistema. Em algum momento depois da Revolução Mundial de 1848, a narrativa liberal centrista do Estado do bem-estar social, que transformara em programa de governo os ideias da Revolução Francesa (liberdade, igualdade e fraternidade) alcançou a hegemonia sobre as demais – conservadora e radical (marxista) – e, nos últimos séculos, vinha conquistando as mentes e os corações das massas de indivíduos.
Entretanto, a velha mágoa contra a economia-mundo capitalista – que, por depender da constante acumulação de riqueza, inevitavelmente resulta em crescente desigualdade social –, aliada à decepção com o fracasso dos vários governos de esquerda em promover um mundo menos injusto, levou a grande maioria dos indivíduos a desacreditar no sistema, a perder a esperança de que os sacrifícios presentes poderiam garantir uma vida menos sôfrega para seus filhos e netos no futuro.
Essa descrença e desesperança generalizada, manifestada nos grandes protestos que vêm sacodindo o planeta desde dezembro de 2010, tem feito ruir tanto o sistema político interestatal, fundado no discurso liberal da representação, quanto a economia-mundo capitalista, legitimada no discurso liberal do mérito.
A vitória de Donald Trump é só mais um dos resultados dessa descrença e desconfiança generalizada no sistema-mundo moderno e em suas pernas econômica, política e cultural, e de seu consequente colapso.
Não sabemos o que nos espera. Mas a efusividade com que o ex-presidente da Ku Klux Klan e a presidente da Frente Nacional, partido ultra-direitista francês, saudaram a vitória de Trump não parece bom presságio.
* Advogado, doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília, pesquisador da Universidade de Oxford (2011- 2012) e da Universidade de Duke (2014-2015), e professor do Mestrado Profissional em Poder Legislativo da Câmara dos Deputados.
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