A menos de um ano da eleição presidencial norte-americana, as pesquisas de intenção de voto indicam Trump na liderança. Apesar de Biden e Trump terem uma idade semelhante (menos de quatro anos de diferença), somente a idade de Biden incomoda. “A idade é um tipo de percepção de descontentamento. Poderia ser a idade ou outra coisa”, afirma o cientista político Fernando Abrucio.
A sensação é de que Biden não tem uma liderança forte. No entanto, a perspectiva negativa acerca do futuro da economia dos Estados Unidos, apontado nas pesquisas, é tópico que merece uma análise mais cuidadosa. Esse dado é intrigante, pois atualmente a economia norte-americana vai muito bem!
Devemos levar em consideração que os dois primeiros anos do governo Biden foram marcados pelo pós-pandemia. A crise de supply chain, a alta do preço do petróleo, a inflação alta e os ajustes salariais no contexto do retorno ao trabalho presencial foram alguns de seus desafios. Os salários ficaram atrás da inflação em 2021 e 2022, mas estão à frente da inflação este ano e com tendência de alta. O Produto Interno Bruto (PIB) americano cresceu 5,2% no terceiro trimestre deste ano, acima das previsões mais otimistas. A inflação desacelerou significativamente, e pode continuar desacelerando ano que vem, ao longo do período de campanha eleitoral.
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A ceia de ação de graças do norte-americano foi 5% mais barata, comparada à do ano passado. O valor do combustível despencou e o desemprego está perto do nível mais baixo em meio século. É importante ressaltar que, mesmo com a inflação alta, as pessoas nunca pararam de consumir e o país em nenhum momento entrou em recessão. O Natal do ano passado mostrou aumento de consumo e das viagens de férias, comportamento atípico quando a população acredita que a economia não vai bem. Pelas métricas tradicionais, a economia está forte; ainda assim, os norte-americanos se mostram descontentes.
Os gráficos abaixo, da agência oficial de estatísticas trabalhistas dos Estados Unidos (Bureau of Labor Statistics), ilustram bem a situação. O primeiro deles mostra o crescimento dos salários (em azul) e da inflação (em laranja) durante os governos Donald Trump e Joe Biden. O segundo indica que, apesar disso, 35% da população diz estar em pior situação do que estava um ano atrás, enquanto apenas 19% afirma se encontrar em melhor situação do que em 2022.
Voltando à nossa questão inicial. O que querem os norte-americanos? O que as pesquisas demonstram sobre o humor do eleitorado é que há um claro descolamento entre a realidade econômica e a percepção das pessoas acerca da economia e, mais especificamente, a respeito do futuro da economia. Esse descolamento entre realidade e percepção parece estar no centro da compreensão de como o eleitorado americano se comportará nas eleições do ano que vem. “Parece que a razão da apatia do eleitorado com relação ao governo Biden é mais um problema estrutural do que o problema da inflação”, ressalta Fernando Abrucio.
Das duas, uma: ou o eleitorado diz que “se consolidou de fato uma melhoria na economia, então vou votar no Biden” ou estamos diante de um problema mais estrutural, relacionado com uma crise do “American dream”, isto é, do sonho de ascensão social norte-americano. Se essa for a razão pela qual a candidatura do Biden não decola, será muito difícil no curto prazo mudar isso. Trata-se menos de uma questão relativa a Trump vs Biden e mais sobre o saudosismo do “American dream”.
O “American dream” é uma percepção de ampliação de riqueza geracional: a sensação de segurança de que os filhos terão mais riquezas que os pais e os netos terão mais riquezas que os filhos. Saudosismo à parte, isso acabou. O altíssimo crescimento econômico das décadas de 1950 e 1960, quando o PIB crescia em taxas anuais superiores a 10% nos EUA, não existe mais. O acúmulo de riquezas é cada vez mais difícil, principalmente para a numerosa classe média norte-americana, apesar de estarmos falando de um país em pleno emprego, hoje com uma das menores taxas de desemprego da história.
O problema-raiz é a desigualdade de renda, que só cresce. Numa nação tão desigual, a renda gerada por um PIB crescente é partilhada de forma tão desproporcional que a impressão de prosperidade generalizada se desfaz. Claro que o problema da desigualdade é anterior ao governo Biden, mas seu plano econômico, o Bidenomics, não conseguiu endereçar o problema. O 1% mais rico dos Estados sempre obteve muito mais do que 1% da renda e da riqueza nacionais, mas raramente obteve tanto como hoje em dia.
Os dados mais recentes mostram que o 1% do topo detém agora 31,4% da riqueza norte-americana, mais do que todos os 90% da base. Entre 1975 e 2018, os adultos com rendimento médio viram os seus salários subirem menos de um terço da taxa do PIB, enquanto aqueles com rendimentos no percentil 99 viram os seus rendimentos aumentarem quase duas vezes mais rapidamente que o PIB. É um xeque-mate no “self-made man” norte-americano, isto é, da crença no enriquecimento baseado apenas no trabalho árduo, individual e meritocrático de cada um.
O gráfico a seguir, do Banco Central norte-americano, traz uma visão mais detalhada dos que se encontram no alto (“top”) e na base (“bottom”) da pirâmide social.
As perspectivas também são ruins para os mais jovens, um eleitorado importante para os democratas e para o presidente Biden, sobretudo depois que a Suprema Corte barrou a proposta de Biden de perdoar a dívida de US$ 430 bilhões em financiamentos estudantis.
Este é o grande paradoxo que os Estados Unidos enfrentam hoje: com a desigualdade tão alta, o crescimento torna-se mais lento. A falta de perspectiva para a classe média é tereno fértil para o discurso populista do Trump de fazer a América grandiosa novamente (“make America great again”).
Nesse contexto, o que seria de fato um segundo governo Trump? “Não vejo um caminho. O primeiro governo Trump retirou impostos dos mais ricos, mas isso não vai mais funcionar”, afirma Abrucio. A tributação norte-americana tem sido cada vez menos progressiva. A solução seria uma espécie de socialismo nos EUA, um Estado mais intervencionista que nunca se viabilizaria, ou um novo Reagan, com uma nova onda ultraliberal.
O paradoxo americano é este: o que os republicanos vendem em termos de narrativa política é menos Estado, menos impostos, mas o que eles precisam para voltar a crescer, voltar a reativar o American dream, é de mais Estado.
Portanto, numa eventual vitória de Trump, a única solução seria fazer algo para reduzir as desigualdades de renda e melhorar o acesso a serviços de saúde e de educação (especialmente a universidades), algo que bate de frente com tudo o que o Partido Republicano tem feito desde Reagan, nos anos 1980. E a retórica dos republicanos está na contramão desse conceito: é menos Estado, menos intervenção e mais lucro para o 1% mais rico.
Em vez disso, Trump teria de fazer um governo menos conservador (do tipo clássico) e mais populista-intervencionista, de modo a agradar o eleitorado que clama por mais bem-estar social, para si e para os filhos, como seus pais e avós acreditaram no passado. Esse é o eleitor decisivo para a próxima eleição presidencial. No entanto, tal modificação seria muito difícil de ser feita nos EUA, pelo menos no curto prazo. Por conta disto, o país vive hoje numa panela de pressão. Uma situação caótica. Somente um governante mais autocrata poderia fazer essa gigantesca mudança história, e talvez seja essa a aposta mais profunda de Trump – e será o maior teste para a democracia norte-americana desde a Guerra de Secessão.
Precisamos entender também a situação jurídica de Trump, sem precedentes na história do país. Nenhum presidente concorreu preso (nem é uma questão de ser condenado), pois há uma possibilidade real de ele ser preso antes da eleição. Nos EUA, não há Justiça eleitoral como no Brasil. Então, em último caso, a situação de Trump pode ser levada à Suprema Corte, composta por juízes de perfil mais conservador e na qual Trump teria maioria. Em algum momento ele também teria que se dar um “auto-perdão”, o que pode levá-lo a um enorme desgaste político.
“É uma faca de dois gumes essa situação do Trump do ponto de vista eleitoral, pois se por um lado ele faz essa imagem de “perseguido” para arrebanhar o voto dos republicanos mais radicais, conseguindo mais fidelidade canina desse grupo, por outro, pode ser que o desgaste com uma possível condenação ou, pior, um mandato de prisão, leve uma parte dos democratas que não estão muito engajados na eleição e, sobretudo, os eleitores independentes, hoje apáticos, a se mobilizarem para votar no Biden”, pondera Fernando Abrucio.
Para além da análise econômica-eleitoral, o aspecto político-institucional de uma eventual vitória de Trump pode representar uma crise do sistema democrático. Recém-eleita, uma parte dos governadores democratas vai certamente acusar o governo Trump de ilegítimo, o que obrigaria Trump a ser um presidente muito bem-sucedido. Se ele não for bem-sucedido, ele já começa o mandato com um pedido de impeachment.
É uma situação de muita crise. Nesse tipo de situação, Trump pode novamente tentar enfraquecer a democracia. Ninguém diria há alguns anos que haveria uma invasão do Capitólio, e aconteceu. A possibilidade de Trump, mesmo ganhando a eleição, encontrar-se numa situação jurídica e política muito ruim, com muitas pressões no Congresso e sérios problemas de popularidade, a ponto de gerar uma paralisação governamental, poderia levá-lo a uma nova tentativa de fechamento do sistema democrático.
Talvez seja a primeira vez na história norte-americana em que essa possibilidade esteja tão próxima de acontecer. É uma situação muito grave não só pela possibilidade de Trump ganhar a eleição, mas também de ele ganhar a eleição e, tendo dificuldades em legitimar seu governo, buscar algum tipo de modelo mais autocrático. Isto seria uma enorme novidade na história dos Estados Unidos, mas parece que é nessa direção que o discurso dele caminha. Apesar de também parecer que a maioria dos norte-americanos quer, caso elejam Trump, coisas muito diferentes.
* Este artigo é parcialmente baseado em entrevista com Fernando Abrucio, professor da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP) e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP).
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