As organizações da sociedade civil têm um papel fundamental no presente e no futuro da humanidade. Esta afirmação tem, mais uma vez, se mostrado verídica a partir da experiência do C20 – grupo de engajamento da sociedade civil junto ao G20 responsável por levar às lideranças mundiais, recomendações para cada um dos temas que estarão em pauta na 18ª rodada de diálogo do grupo, que culminará com a Conferência entre Chefes de Estado nos dias 9 e 10 de setembro, em Nova Deli, na Índia.
Por mais que tenhamos buscado fortalecer instâncias multilaterais mais equilibradas, que considerassem as prioridades de todos os países, o G20, formado pelas maiores economias do planeta, acabou se consolidando como um fórum estratégico no debate da cooperação econômica internacional e tem imenso peso na formação e fortalecimento da arquitetura e governança global em todas as principais questões econômicas mundiais. Daí a importância do trabalho articulado das organizações da sociedade civil através do C-20.
O C20 é sempre presidido pela sociedade civil do país-sede, este ano a Índia, e seu direcionamento é dado por uma “troika” composta por representantes do atual, do anterior e do seguinte país anfitrião do G20. E como consequência de uma sólida participação no processo, que acompanha desde 2010, em dezembro do ano passado a Gestos, ONG pernambucana, foi convocada pelos seus pares no C20 a compor a troika para a Índia e, posteriormente, Brasil e África do Sul.
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Assim, desde janeiro, temos acompanhado os esforços de 14 grupos de trabalho e um Comitê especial sobre a agenda econômica que até meados de julho deverão apresentar, ou melhor dizendo, reafirmar suas recomendações sobre os principais temas que afligem a humanidade e castigam, sobretudo, as populações mais vulnerabilizadas dos países mais pobres (em sua maioria, no sul global).
Porém, a ideia de que muitos compromissos já foram firmados – e descumpridos– pelo G20 e a necessidade de maior capacidade de controle social em âmbito doméstico, em cada um dos seus países membros, foram os principais aspectos que escolhi reforçar semana passada, durante a C20 Inception Conference realizada de 20 a 23 de março, em Nagpur, no coração da Índia, sob o mote “Nós Somos a Luz”, da qual participaram organizações da sociedade civil de 26 países.
Insisti nisso porque ao longo dos anos os países do G20 assinaram muitos compromissos progressistas em organismos multilaterais, concordando em agir para aumentar a cooperação norte/sul, erradicar a pobreza e a fome. Comprometeram-se também em promover a igualdade de gênero e garantir o acesso à educação e à saúde (inclusive aos direitos sexuais e reprodutivos) para todas as pessoas; a implementar abordagens baseadas em direitos e na ciência, a protegerem o meio ambiente, e até a transferir tecnologias.
Ainda que tenham afirmado agir para que os direitos humanos coubessem nos orçamentos públicos, nada disso se verificou na prática, pelo menos para a maioria dos países do grupo. Muito pelo contrário, os fatos mostram o aprofundamento das desigualdades intra e entre países, verificados por exemplo pelo crescimento da fome, da pobreza extrema, do agravamento da emergência climática, da perda de biodiversidade e pelo aumento das violências, particularmente contra mulheres, crianças, povos indígenas e população negra e LGBTIQA+.
Verdade seja dita (a despeito daquilo que líderes mundiais fingem ignorar), juntas, as economias dos Estados-membros do G20 poderiam resolver a maioria dos problemas que enfrentamos – muitos dos quais causados pela ação imperialista e colonial de nações que integram este grupo. É grave, portanto que compromissos assinados por eles – como a Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável, o Acordo Climático de Paris, a Agenda de Ação de Adis Abeba ou a Plataforma de Busan – tenham sido categoricamente ignorados, lentamente implementados e/ou, muitas vezes, sumariamente descumpridos pelos próprios signatários.
Em alguns casos, essas agendas se tornaram ponto de inflexão em plataformas políticas de líderes de extrema direita completamente anacrônicos, que mais parecem ter saltado das páginas dos livros de história – como no filme do diretor alemão David Wnendt, Ele está de Volta (Er ist wieder da) – e que têm tratado as organizações da sociedade civil e todo o campo progressista como inimigas públicas a serem caladas a qualquer custo, sobretudo por meio do medo e da violência. Nesse aspecto os BRICS são uma vitrine e o próprio Brasil “se livrou” (entre várias aspas) de uma liderança semelhante há pouco tempo. Na Índia, aproveitei ainda para lembrar que a paz, a equidade e a justiça social só podem ser alcançadas em democracias reais e que, portanto, a defesa de um Estado de Direito radicalmente democrático é um pilar central para o desenvolvimento sustentável. E também expressei como frustração latente que talvez nem precisemos de novos acordos, seria já de bom tamanho se o G20 efetivamente implementasse as resoluções que já acordou em diversas instâncias e organismos multilaterais.
Mas, enquanto isso não ocorre (e até para que ocorra um dia) precisamos de uma sociedade civil organizada, independente, proativa e permanentemente engajada nesse processo, pois guiar nossas lideranças para um rumo certo, baseado em direitos e sem deixar ninguém para trás, é nossa grande missão. O desafio, porém, é ter as condições adequadas para influenciar e monitorar as decisões políticas tomadas dentro e fora de nossos países.
Em Nagpur, além de lembrar que as recomendações do C20 Índia devem inspirar o G20 a usar seu peso político e estruturas de financiamento para tentar reverter as múltiplas crises que a humanidade enfrenta, destacamos ainda a necessidade de redesenho da arquitetura financeira global; de regular de forma eficaz o setor privado, de eliminar os paraísos fiscais (onde até ministros e chefes de Estado mantém contas gordas enquanto seus países afundam em dívidas e pobrezas imorais), aprovar impostos progressivos, taxar grandes fortunas e heranças, combater o abuso fiscal por corporações multinacionais e os fluxos financeiros ilícitos por meio de um processo intergovernamental universal, inclusive revendo o papel dos bancos públicos de financiamento (como o do BRICS) e alinhando-os aos princípios da Agenda 2030.
E, além dos desafios, tratamos também das oportunidades que nos cabem. O C20, em colaboração com outros grupos engajados no seguimento do G20 como think-tanks (T20) e mulheres (W20) poderá na Índia (e em 2024 no Brasil, seguido da África do Sul) seguir insistindo que não nos faltam soluções ou capacidades, talvez o que nos falte sejam a coragem e a responsabilidade política por parte de nossos governos para que façam as necessárias mudanças rumo a uma nova, inclusive e justa arquitetura de financeira global, com uma cooperação econômica que funcione para todas as pessoas e para o planeta.
Ser integrante da troika do C20 confere à Gestos uma imensa responsabilidade em contribuir para o capítulo na Índia e, considerando que ano que vem será a nossa vez de sediar o C-20 e receber aqui nossas parceiras internacionais de tantos anos, deixamos aqui o convite para que mais organizações da sociedade civil nacionais acompanhem este processo em 2024. Entre o presente (Índia) e o futuro (Brasil e África do Sul) teremos, sem dúvida, uma grande oportunidade de demandar o cumprimento dos compromissos já firmados para o alcance do desenvolvimento sustentável. Enquanto isso, esperamos que o Brasil avance e demonstre, na prática, que terá coragem para enfrentar as desigualdades e as múltiplas crises que nos aflige, conquistando assim, cada vez mais respaldo para que, em 2024, possa convidar, sob sua liderança, os demais países do G20 a fazerem o mesmo.
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