Um minuto de silêncio em homenagem a mais uma bela e generosa iniciativa que veio a falecer. Sim, a Organização das Nações Unidas (ONU), tal como idealizada na Conferência de São Francisco em 1944, morreu. Assim como os faraós, possui um belo túmulo, aliás, dois, um em Nova Iorque e outro em Genebra, compartilha este com a múmia de sua genitora, a Sociedade das Nações (SDN). Nada mais justo que mumificá-la à espera de uma futura ressurreição. Curioso que ainda parece estar viva, mas só para confundir observadores crédulos, surgem iniciativas na área de direitos humanos que ninguém respeita; eventuais Forças de Paz muitas vezes escorraçadas (Ruanda, Iugoslávia, Líbano, Sudão etc.); vibrantes e contundentes resoluções da Assembleia Geral e até do Conselho de Segurança que ninguém aplica e por aí vai.
Mas vamos ao cerne da questão: a ONU era a máxima expressão, renovada, de um mundo baseado no entendimento, no diálogo, no respeito às diferenças e, mormente, na solução pacífica de controvérsias. Em suma, um mundo sem guerras. Era o ápice da civilização. Era o apogeu do multilateralismo de inspiração rousseauniana nascido após a I Guerra Mundial, cujo máximo expoente e defensor era o então presidente dos Estados Unidos, Woodrow Wilson.
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A Europa, exangue, aceitou a criação da SDN, que propiciou importante contribuição arquitetônica à cidade de Genebra e parou por aí. O Congresso dos Estados Unidos rejeitou a adesão à SDN, o que abalou a saúde de Wilson, que veio a falecer pouco depois. Mesmo assim, a flamante instituição produziu alguns documentos de referência que fazem, até hoje, a alegria e o ganha pão de numerosos acadêmicos. Teve vida curta pois logo surgiram movimentos totalitários: Itália em 1923, Alemanha em 1933, e o expansionismo japonês (invasão da Manchúria em 1931).
A SDN reagiu aplicando sanções e as potências transgressoras optaram por abandonar o organismo e seguir a vida. Caminho este que levou à II Guerra Mundial. Diante desse primeiro fracasso decidiu-se insistir e constituir um organismo que pudesse, de fato, exercer a força, caso necessário, e com a aprovação da comunidade internacional. De onde surgiu a ONU e o famigerado Conselho de Segurança (CS), com os seus cinco membros de 1ª classe (EUA, Rússia, Reino Unido, França e China) com cadeira cativa e direito a veto. Os outros 188, até a data de hoje, devem se ater à retórica.
Como os cinco poderosos não se entendem, o CS não aprova nada substantivo e virou uma arena política, onde o nível do debate baixa a cada ano. O Brasil, sempre ufanista, celebrou a derrota de sua trabalhosa iniciativa em prol de uma resolução do CS, que teria por finalidade poupar vidas inocentes, na faixa de Gaza, no conflito entre Israel e o Hamas. Isso expressa bem o declínio do multilateralismo humanista, para assim caracterizá-lo, ficou uma derrota a ser comemorada e só. E uma iniciativa de Malta, nesse mesmo CS, foi há pouco aprovada. Israel já declarou que não reconhece essa resolução e vai tocando sua campanha militar em Gaza.
Mas, como explicar um mundo sem multilateralismo? Se o multilateralismo “soft” já era, o multilateralismo “hard” está mais vivo do que nunca. O nosso mundo contemporâneo passou por mudanças abruptas e drásticas. Primeiro, desmoronaram os impérios coloniais europeus, mormente na África, há menos de 70 anos. Depois, a URSS derreteu da noite para o dia. Isto levou à crença no “fim da história” e a supremacia da democracia ocidental e do capitalismo à moda dos EUA. Tivemos duas décadas de mundo unipolar e, hoje, temos um mundo multipolar, ou seja, sem um único centro de poder. China e EUA estão se digladiando pela primazia nas relações internacionais. Existem atores periféricos de relevância: Rússia e Índia, em particular. Outros, que poderiam ter papel mais influente, estão às voltas com problemas internos de diversa magnitude: África do Sul, Brasil, Egito, Indonésia, Nigéria, México, Paquistão, entre outros.
O multilateralismo hoje consiste em agrupar nações ao redor dos líderes, seja, China, seja os EUA. A União Europeia ainda não conseguiu estruturar-se como centro de poder, pelo que fica sob a esfera de influência dos Estados Unidos. Esse multilateralismo “clássico” sempre existiu. Países faziam alianças para se proteger ou ameaçar outros, como nos tratados de assistência recíproca que antecederam a I Guerra Mundial. Outro exemplo foi Conferência de Berlim, de 1885, onde as então grandes potências decidiram partilhar a África. Nenhum representante africano esteve presente, não fosse atrapalhar as negociações…
Hoje temos a OTAN, o G-7, o clube dos ricos, o G-20, o clube dos remediados, a CEI (que congrega diversos países da extinta URSS), o grupo Brics, assim como diversas organizações de variada importância que orbitam ao redor de uma potência dominante. Isso é o multilateralismo de sempre. Com exceção da Otan, todos os outros são de irrelevância variada.
Convém frisar que existe diferença entre multilateralismo e multipolaridade. A multipolaridade é o choque de placas tectónicas à procura da supremacia mundial. Com o fim do sonho de igualdade prometido pelo socialismo, resta a força bruta e a dura realidade dos “mercados”. Claro que os gigantes preferem digladiar-se terceirizando os conflitos, de onde intermináveis guerras civis na África, guerra na Ucrânia – atabalhoada tentativa da Rússia de recuperar poder, a retroalimentada guerra entre Israel, Palestina e vizinhos… Aqui na América do Sul, periferia por excelência, existe uma falsa tranquilidade. Fator de desequilíbrio é a Venezuela bolivariana que, acuada pela sua própria incompetência, optou por uma saída estilo “Malvinas”. O governo de Maduro acabou de anunciar um “referendo” sobre a região de Essequibo, que pertence à República Cooperativista da Guiana e representa em torno de 70% do seu já exíguo território. Já houve arbitragem internacional que decidiu em favor da Guiana e que a Venezuela jamais aceitou. Caso a Venezuela invada, o que fará o Brasil? O Mercosul? Nada, além de retórica, talvez propor um grupo de “amigos da Venezuela&Guiana”, e pronto. Serão os EUA que terão de salvar a Guiana de sua extinção. Isto prova que a multipolaridade se limita aos fortes.
Há tentativas de blocos como a União Europeia, Mercosul, União Africana, Liga Árabe, mas na hora da verdade, poucos ficam em pé. Alguns servem apenas como mascates internacionais, dedicados a intermináveis tratativas de conseguir vantagens comerciais em detrimento de outros. Mas esse multilateralismo não constituiu polos alternativos de poder.
Por fim, para o epitáfio (que desejamos seja passageiro) do multilateralismo “soft” podemos citar a progressiva irrelevância da Organização Mundial de Comércio (OMC), do Banco Mundial (banco com menos fundos que o BNDES), do FMI (que só rosna com os pequenos). Desde os primórdios da civilizações as relações que contavam eram bilaterais e assim continua sendo. Vivemos em um mundo hobbesiano e precisamos, para sobreviver, conseguir um Pacto Social Mundial para preservar a civilização, frágil conquista.
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