Solidariedade é um imperativo constitucional. Um dos objetivos fundamentais da República é construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, inciso I, da Constituição Federal). O texto fala em construção, reconhecendo que não é algo pronto e, como qualquer coisa a ser construída, leva tempo, exige planejamento, esforço e investimento. No caso da sociedade, a construção nunca termina e necessita de constante manutenção.
Dos três elementos desse fundamento, liberdade e justiça podem ser garantidos pela força da lei. Qualquer atentado ilegal à liberdade pode ser imediatamente repelido pelos instrumentos jurídicos existentes no nosso ordenamento, sobretudo por meio do habeas corpus.
Uma injustiça pode e deve ser combatida garantindo-se o acesso ao sistema de justiça, democratizando a prestação jurisdicional, aperfeiçoando o sistema legal. Quando há vontade política, mesmo a injustiça social pode ser amenizada por força de políticas públicas impostas pelos poderes constituídos. Já a solidariedade é refratária à força da lei.
Ninguém se torna solidário por decreto. Solidariedade é fruto de empatia, algo escasso ultimamente, e é virtude irmã da compaixão. Leonardo Boff diz que “o terrível do sofrimento não é tanto o sofrimento em si, mas a solidão nele, sem uma mão que se estende para ajudar, sem um ombro que se oferece para apoiar. Pela compaixão nunca deixamos a pessoa sofrer sozinha; sofremos juntos, caminhamos juntos, mas também nos aliviamos e nos libertamos juntos”. Quem tem compaixão é solidário.
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Voltando à metáfora da construção, qualquer edificação sofre abalos ao passar por um terremoto de grandes proporções. Assim está acontecendo com as sociedades humanas ao sofrerem a pandemia da covid-19, a maior dos últimos cem anos. É como um terremoto chacoalhando as estruturas sociais, ou, de alguma forma, os fundamentos da nossa República.
Uma tragédia natural pode despertar um sentimento de solidariedade nas pessoas, um desejo de união para reconstrução a partir dos escombros. Mas pode despertar o que há de pior também, saques, violência, aumento abusivo de preços de produtos de primeira necessidade etc. O mesmo ocorre nesses tempos pandêmicos.
Cumprir os protocolos da OMS e das autoridades sanitárias das três esferas de governo não é apenas cumprir uma norma, é também um ato de respeito ao outro. Como já exaustivamente explicado pelas autoridades sanitárias e, principalmente, pela comunidade científica, o uso de máscara e álcool em gel, o distanciamento social, a proibição de aglomerações etc, são maneiras de se proteger e de proteger o outro.
Não me contamino e não contamino ninguém. Isso é solidariedade. Quando feito espontaneamente, ótimo. Quando há recalcitrância, pode ser imposta pela lei. Evidentemente que, ao cumprir essas medidas apenas por medo da punição, não há solidariedade alguma, mas isso pouco importa para o mundo jurídico. Entretanto, isso importa muito para o tipo de sociedade que queremos construir.
Queremos uma sociedade em que haja o império da lei e da ordem. A ninguém que seja minimamente civilizado interessa o caos. Existe um grave problema, no entanto, quando se deseja o peso lei e da ordem para os outros e uma recusa em se submeter ao regramento a todos imposto. Parece que é o que foi visto nos episódios em que pessoas furaram a fila da vacinação.
Sem qualquer pudor, algumas pessoas, que não faziam parte dos grupos prioritários, deram um jeito de passar à frente dos que realmente precisavam. Também há notícia de que alguns líderes religiosos foram autuados realizando reuniões com muitas pessoas, mesmo onde havia decreto do poder público proibindo momentaneamente esse tipo de aglomeração. Alguns bares e restaurantes abriram, acintosamente, suas portas, desafiando o que é imposto a todos pela lei.
Como hoje em dia as redes sociais expõem quase tudo, não é difícil verificar que muitas pessoas que tiveram esse comportamento são aquelas que, quando acham conveniente, clamam com veemência pela aplicação exemplar da lei a quem elas julgam criminosos. Ou seja, a espada da lei é para os outros; para eles mesmos, leniência. A frase sempre repetida, e de autoria incerta, foi piorada: para mim, tudo; para os amigos, se sobrar; para os inimigos, a lei.
Para além da discussão do caráter criminoso das condutas acima, e são condutas criminosas, frise-se, elas revelam uma sociedade adoecida, sem o fundamento da solidariedade. Sem essa base, esse fundamento, não é possível construir uma sociedade fraterna, justa e livre. Falta a percepção de comunidade, de que fazemos parte do todo, de que não há vida possível apenas preservando interesses individuais em detrimento da vida comunitária. Empatia, compaixão e solidariedade, a preocupação e o cuidado com o outro, não existem para essas pessoas.
O cenário fica ainda pior quando líderes políticos com grande poder de decisão sobre a vida das pessoas são os protagonistas de tais violações. Propagação de tratamentos sem eficácia comprovada cientificamente, declarações contra vacinas (cuja eficácia tem comprovação científica), promoção de aglomerações, passeios sem máscara (o que além de ser uma violação da norma é um péssimo exemplo), pouco ou nenhum empenho em políticas públicas de combate à pandemia, entre outras, são práticas recorrentes de algumas figuras públicas no nosso país.
Sem contar a falta de empatia e solidariedade com vítimas fatais e seus familiares. Não é demais lembrar que maioria dessas figuras chegaram ao poder surfando em um discurso contra a corrupção e bradando pela aplicação implacável da lei e da ordem.
Aqui também parece que o desejo de aplicação firme da lei só vale para os outros, para quem não está do mesmo lado no espectro político, para quem não compartilha das mesmas ideologias. Não punir os autores dessas condutas é um péssimo sinal, uma disfuncionalidade das instituições, que compromete severamente o regime democrático de direito e adoece ainda mais a sociedade como um todo.
No momento em que mais de mil pessoas morrem por dia no Brasil, vítimas da covid-19, é bem atual a frase de John Donne: “Não perguntem por quem os sinos dobram; e por você que eles dobram”. Como não há solidariedade de todos, que haja a aplicação da lei e da ordem para, rigorosamente, todos. Senão, sequer teremos condição de perguntar por quem os sinos dobram; daqui a pouco estarão dobrando, literalmente, por nós mesmos.
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