“A maioria dos homens dos tribunais não associava a discriminação, no mau sentido, com o tratamento dado às mulheres. Eles acreditavam que as mulheres tinham o melhor dos mundos possíveis. O desafio era educar os homens nos tribunais, e fazê-los perceber que havia algo de errado com o mundo”
Esta frase bem retrata a importância do debate sobre o preenchimento da vaga de ministro ou ministra do Supremo Tribunal Federal (STF), a ser aberta com a aposentadoria da ministra Rosa Weber. Ela não fora pronunciada por mim ou alguma das incontáveis e qualificadas mulheres que poderiam ser escolhidas pelo presidente Lula. Tampouco por alguma legitimada feminista ao apontar a histórica ausência de mulheres no Poder que tem a atribuição constitucional de decidir, por último, sobre as coisas do Brasil.
Não! A autora desta preciosa e impactante observação é Ruth Bader, a fenomenal magistrada da Corte Constitucional estadunidense que ingressou na História ao fazer do seu exemplo o melhor argumento da capacidade técnica, ética, espiritual e humana da mulher enquanto julgadora. Ao desnudar o reinante machismo estrutural, Ruth Bader demonstrou que não adianta uma legislação que propagandeia a liberdade como razão de ser constitucional, quando a mentalidade do julgador estiver presa em conceitos firmados em teses patriarcais, patrimonialistas e unilaterais. Dentre elas aquelas que afirmam que as mulheres vivenciam os mesmos direitos, garantias e oportunidades que os homens assegurados pela Democracia. Ou as que se gabam que a modernidade trouxe para o mundo terreno o Paraíso da Igualdade Racial.
Mudar a realidade de um Poder Judiciário excludente da participação de mulheres nos órgãos colegiados não é tarefa exclusiva do presidente da República. Salvo na parte referente à livre escolha da pessoa indicada para o STF, nos demais Tribunais o chefe do Executivo está limitado à lista tríplice enviada pelo órgão judicial cuja vaga será preenchida, sendo que no caso do chamado quinto constitucional (lista tríplice no Superior Tribunal de Justiça), a admissibilidade da candidatura é da Ordem dos Advogados do Brasil e do Ministério Público. Nenhum desses órgãos, entretanto, preocupado com o aumento qualitativo e quantitativo das mulheres em suas respectivas composições, não raro escolhendo e enviando listas compostas apenas por homens. Ou, por elas não participarem das prévias decisões políticas que definirão as listas, desestimulando-as na fase primeira das candidaturas.
Utilizando-se de uma expressão achada na vida pelo eterno reitor da Universidade de Brasília, José Geraldo de Sousa Júnior, a presença massiva de homens na cúpula do Poder Judiciário provoca no órgão encarregado de aplicar a Justiça a “cosmovisão” impeditiva da plena compreensão dos males do machismo, do racismo, do feminicídio, da violência de gênero, do assédio sexual e moral, da desigualdade social e incontáveis fórmulas de discriminação. É o que bem ensinou o alagoano Graciliano Ramos em Memórias do Cárcere, ao escrever: “Quem dormiu no chão deve lembrar-se disto, impor-se disciplina, sentar-se em cadeiras duras, escrever em tábuas estreitas. Escreverá talvez asperezas, mas é delas que a vida é feita: inútil negá-las, contorná-las, envolvê-las em gaze”.
Não se pode esquecer que a aprovação da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) decorreu de reprimenda internacional pela forma morosa com que o Poder Judiciário tratava – e ainda trata – o tema da violência contra as mulheres. E não adiantará a aprovação de leis que protegem as mulheres (Lei Carolina Dieckman – 12.737/2012; Lei Joana Maranhão – 12.650/2012; Lei do Minuto Seguinte – 12.845/2013, Lei do Feminicídio – 13.104/2015; dentre outras) se a palavra final do Judiciário não contar com os testemunhos e as escritas decisórias das pessoas que são delas destinatárias, especialmente as mais vulnerabilizadas e necessitadas da proteção estatal. É a triste realidade divulgada e sentida nas páginas da “História Descivilizada”.
Em recentíssima e importante decisão, o STF enviou à presidência da República uma lista tríplice para o TSE, integrada exclusivamente por mulheres. Fora um bom exemplo de como a inclusão poderia ser obtida dentro das regras atuais, o que poderia ser seguido nas listas dos demais Tribunais. Também seria fundamental aumentar – por decisão exclusiva do presidente da República – a presença de ministras no STF, evitando o retrocesso de sua redução numérica e qualitativa. Mas julgo que é basilar seguir modelo objetivo adotado pelo vizinho Equador, quando estabeleceu na sua Constituição Federal, notadamente em seu art. 183, a obrigatoriedade da paridade entre homens e mulheres na composição da Corte Nacional de Justiça e demais órgãos públicos (art. 176).
O magistrado português Orlando Viegas Afonso, com a sua experiência de antigo presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses – ASJP e também da MEDEL – Associação dos Magistrados Europeus pela Democracia e pelas Liberdades, pontuou “que se é importante a discussão sobre a imparcialidade e a independência, não menos importante é, nos regimes democráticos, a forma como os Juízes são nomeados (selecionados e formados) dado ser por demais conhecida a relação entre a sua atitude político-cultural e o seu recrutamento”. E não se tem dúvida de que é verdadeiramente desproporcional e injusta a fórmula adotada para o recrutamento das pessoas que integram as cúpulas dos Tribunais brasileiros, não raro recaída sobre homens selecionados de famílias abastadas economicamente, politicamente influentes ou tradicionalmente excluídos da convivência igualitária com os grupos historicamente vulnerabilizados. Urge, portanto, que tenhamos o recrutamento de mulheres e representações vulnerabilizadas nos órgãos do Poder Judiciário, enquanto a linha do Equador não traçar o horizonte jurídico brasileiro.
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