por Patrícia Gasparro Sevilha Greco*
Recentemente o caso Dallagnol ganhou novamente a atenção pública. Desta vez, porque em sede de liminar (TPRecl 60.201), o ministro Dias Toffoli autorizou a imediata diplomação do suplente Luiz Carlos Hauly, do Podemos-PR.
Recapitulando o caso, o deputado federal eleito pelo estado do Paraná teve sua candidatura indeferida pelo TSE, o qual reconheceu fraude à lei eleitoral, ao se desligar do Ministério Público Federal e, portanto, evitar possíveis processos administrativos que pudessem advir, ficando, deste modo, passível de sofrer a incidência de causa de inelegibilidade (art. 1º, I, q da LC 64/90).
Na ocasião do julgamento do TSE, restou decidida a aplicação do entendimento de que os votos angariados por Dallagnol deveriam ser computados ao Podemos, haja vista sua candidatura estar deferida na data do pleito, mesmo que sub judice (art. 20, III c/c § 2º, da Res.-TSE 23.677/2021 e ADI 4.513, Rel. Min. Luís Roberto Barroso).
Leia também
Ocorre que, para acatar o comando do TSE, o TRE do Paraná aplicou a normativa prevista no artigo 108 do Código Eleitoral, a qual traz a previsão da denominada “cláusula de desempenho” e que determina: “Estarão eleitos, entre os candidatos registrados por um partido que tenham obtido votos em número igual ou superior a 10% (dez por cento) do quociente eleitoral, tantos quantos o respectivo quociente partidário indicar, na ordem da votação nominal que cada um tenha recebido”.
Seguindo a lógica da aplicação da cláusula de desempenho, a qual propõe uma maior legitimidade aos candidatos eleitos, porquanto se afastaria o efeito do “puxador de voto”, nenhum dos candidatos do Podemos no PR estaria apto a compor a cadeira vaga, pelo que se repassou ao próximo eleito com maior número de votos e que atendesse a esse critério, resultando, assim, na diplomação do candidato Itamar Paim, do PL/PR.
No coração do debate, alguns pontos extremamente importantes e que, para efeitos didáticos, reduzirei a dois e de duas naturezas diversas: i) a questão técnico-jurídica acerca da natureza do sucessor de Dallagnol – se suplente ou não; e ii) o paradoxo sistêmico de previsões normativas que buscam dar maior representatividade aos eleitos pelo sistema proporcional.
Quanto à questão técnico-jurídica, debate-se se o novo mandatário seria um candidato novo, ou seja, que se submeteria às regras do artigo 108 do Código Eleitoral e, portanto, passível de aplicação da cláusula de desempenho, ou se seria um suplente de Deltan Dallagnol, tendo tal exigência afastada pelo parágrafo único do artigo 112 do mesmo códex.
Aos que defendem a figura de uma nova candidatura, pesam os argumentos de que não se trata da cassação de mandato do deputado federal, mas, sim, de indeferimento de sua candidatura, tornando ao status quo ante, como se ele não houvesse concorrido, pelo que, assim, não faria jus a uma suplência.
Já a ala que entende que Dallagnol teria direito à suplência, recai, em especial (ainda que não unicamente), o argumento de que esse indeferimento se deu após a eleição, quando ele já estava no exercício do mandato. Portanto, tal ponto cronológico atrairia, de per si, a figura da suplência.
Independentemente de qual ótica se opere a solução da demanda em curso, parece que o nó górdio do tema não versa, exatamente, na questão técnico-jurídica. Não que o debate sob esse prisma não seja sofisticado, necessário e de elevada importância, mas nenhuma das soluções apontadas parece resolver o paradoxo que se criou no sistema representativo eleitoral.
O Direito é um sistema, como já observaram as obras seminais de juristas como Kelsen, em sua Teoria pura do Direito (Reine Rechtslehre) e Hart e seu Conceito de Direito (Concept of law) ou de sociólogos como Luhmman, em sua obra Sistemas sociais: fundações de uma teoria sociológica (Foundations of Sociological Theory). Mas foi com a Teoria geral dos sistemas (General system theory – a new approach to unity of science), de Karl Ludwig Von Bertalanffy, que se destacou a importância de entender os sistemas como entidades complexas, compostas por elementos interdependentes que se relacionam e se influenciam mutuamente.
Bertalanffy discutiu conceitos-chave como a hierarquia de sistemas, a retroalimentação, a equifinalidade (a capacidade de alcançar um mesmo objetivo a partir de diferentes condições iniciais) e a autopoiesis (a capacidade de um sistema se autorreproduzir). Ainda que não voltada para o universo jurídico, as análises sobre sistemas, propostas por ele, encontram plena aplicabilidade, tanto que são vistas em vários conceitos que constam nas obras dos juristas e sociólogo referenciados.
Sendo um sistema, o ordenamento jurídico deve expurgar paradoxos, a fim de que sua aplicabilidade seja fluida e se atinjam as tutelas dos bens jurídicos erigidos. Contudo, a cláusula de desempenho eleitoral parece ser a consubstanciação de um paradoxo proposto por Russell – o chamado “paradoxo do barbeiro”. Nesse paradoxo, Russell traz a seguinte situação: em uma cidade, um barbeiro só pode barbear homens que não se barbeiam, logo, se ele se barbear, estaria barbeando um homem que se barbeia, o que é contra o enunciado; por outro lado, se ele não se barbear, estaria autorizado a se barbear, mas recairia na aporia inicial.
Esse paradoxo revela uma contradição lógica, mostrando que não é possível criar um conjunto que contenha todos os conjuntos que não se contêm a si mesmos. Russell usou esse paradoxo para argumentar contra uma teoria matemática conhecida como “teoria dos tipos”, que tentava evitar paradoxos lógicos, mas também limitava o alcance da Matemática.
Transpondo essa lógica para o universo jurídico, o que se vê na aplicação da previsão normativa do Direito Eleitoral brasileiro, em relação à cláusula de barreira, é exatamente o paradoxo russeliano: somente se admitem candidatos que tenham um mínimo de votação, a fim de se respeitar um maior número de eleitores votantes, ainda que isso implique desconsiderar um número ainda maior de votos que deveriam ser computados para uma legenda.
Em outras palavras: pode-se computar os votos recebidos pelo Podemos no Paraná, mas o efeito prático seria exatamente o mesmo que se não pudesse, já que o segundo colocado (ou suplente, como preferirem) não atingiu a cláusula, autorizando a diplomação do próximo e de outra legenda que a tenha atendido, pouco importando os mais de 340 mil votos que endossariam o diploma do segundo mais votado na mesma sigla que Dallagnol.
Vê-se que a correção da falta de coerência parece ser mais o tônus da liminar concedida do que propriamente a questão técnico-jurídica que a carreia. Não fosse a questão, no mínimo paradoxal, de se negar a diplomação ao candidato do Podemos por padecer de “representatividade” (pois, em resumo, é sobre isso que versa a cláusula de desempenho), ignorou-se o fato de que os votos da legenda se quedaram reduzidos a nada.
Para além da correção ou não das decisões judiciais que vêm se descortinando, parece que a lógica das regras jurídicas que versam sobre o tema expôs uma fragilidade que urge ser repensada, a fim de que a representatividade, tão tutelada e almejada, não seja ferida pelo mesmo sistema que a visa proteger.
* Patrícia Gasparro Sevilha Greco é doutorada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), no Paraná, professora e pesquisadora de Direito Eleitoral, além de membra da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep).
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para redacao@congressoemfoco.com.br.
Deixe um comentário