Quando a turba invadiu a sede dos Poderes da República no 8 de janeiro, a reação institucional foi exemplar e exibiu uma aliança em defesa do Estado Democrático de Direito. A marcha de Lula, Rosa Weber e Rodrigo Pacheco na Praça dos Três Poderes, diante da destruição dos prédios, anunciava um rumo: o episódio fora uma tentativa de golpe de estado e não ficaria impune.
O julgamento do primeiro réu entre os invasores, Aécio Lúcio Costa Pereira, mostra, porém, que a mensagem institucional do 8 de janeiro não foi assimilada por todos os ministros do Supremo Tribunal Federal. Os votos de Kassio Nunes Marques e André Mendonça divergiram do relator, Alexandre de Moraes. Ambos absolveram o réu do crime de tentativa de golpe de Estado e, na prática, transformaram os agentes golpistas em meros vândalos. Revelaram uma fratura numa Corte que parecia unida pela restauração da democracia.
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Moraes foi explícito em seu voto: “Essa turba, de forma violenta, passou a destruir o patrimônio público, o Congresso, o STF, com maior violência, e o Palácio do Planalto. Está muito claro nas próprias mensagens que vários deles postaram: com o intuito de derrubar o governo democraticamente eleito em 2022 e que havia tomado posse em janeiro de 2023, pleiteando uma intervenção militar.”
O ministro ecoou as palavras da presidente do STF, Rosa Weber, ao abrir o ano do Judiciário, que classificou aquele dia como “ataque golpista e ignóbil” afirmando que “o sentimento de respeito pela ordem democrática continua e continuará a iluminar as mentes e os corações dos juízes da Corte Suprema, que não hesitarão em fazer prevalecer sempre os fundamentos éticos e políticos que informam e dão sustentação ao Estado Democrático de Direito”.
Mendonça, porém, teve “sérias dúvidas sobre a participação de todas as pessoas presas no crime de associação criminosa”. Para ele, nem toda tentativa de abolição do estado democrático de direito significa se chegar a um golpe. Para o ministro, um golpe de estado pressupõe atos não só de destituição poder, mas de estabelecimento de uma nova ordem jurídica e institucional. “Eles não agiram para tentar depor o governo”, sustentou, afirmando que a intenção dos invasores era criar instabilidade institucional, mas que um golpe dependeria da de outras forças, “basicamente, os militares”.
O ministro Gilmar Mendes reagiu. Evocou o clima de instabilidade e ameaça à democracia que prevaleceu durante o governo Bolsonaro para lembrar o “contexto” em que os fatos ocorreram. Citou manifestação em frente aos quartéis pedindo intervenção militar e duas comemorações de 7 de setembro que, segundo disse, poderiam ter se transformado em arruaças como a de 8 de janeiro. “A cadeira em que o senhor está sentado estava na rua”, disse ele a Mendonça.
Ao votar, subscrevendo integralmente o voto do relator, Gilmar lembrou também dos ônibus queimados e da invasão à sede da Polícia Federal no dia da diplomação de Lula, em 12 de dezembro passado. “O pano de fundo desse debate é tudo isso que ocorreu durante todo esse tempo”, disse.
Mendonça, ministro da Justiça no governo passado, manteve sua posição e usou um dos argumentos mais caros aos bolsonaristas: disse não entender como o Planalto fora invadido daquela forma, numa tentativa de implicar o governo Lula no episódio. Moraes interveio com irritação: “Vossa Excelência está no plenário do Supremo Tribunal Federal dizendo que houve uma conspiração do governo contra o próprio governo? Tenha santa paciência!” Houve depois protocolares pedidos de desculpas entre ambos, mas os recados foram dados.
Coube a Luís Roberto Barroso dar contornos mais precisos ao contexto a que Gilmar se referia, fazendo um histórico do golpe de 64 e seus desdobramentos, até o AI5. Afirmou que o julgamento tinha um caráter “didático e civilizatório” e que representava “um reencontro com os piores dias de seu passado”. Para Barroso, “é impossível lidar com esse contexto de tentativa de golpe e pregação da volta do regime militar sem lembrar do que o país viveu”. Cármen Lúcia contribuiu para demolir a argumentação de Mendonça e Kassio: “Os golpes não têm modelo, não têm figurino.”
O placar final era esperado, mas as divergências mostraram que os absurdos do 8 de janeiro não foram plenamente assimilados. O racha na Corte indica que a democracia será sempre uma obra em construção, longe de acabar. Rosa Weber encerrou com palavras que carregaram uma repreensão aos votos dissidentes: “Não foi mesmo um domingo no parque. Foi um domingo de devastação, foi o dia da infâmia.”
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