Cláudio Pereira de Souza Neto *
A Emenda Constitucional (EC) 74 corrigiu uma grave incoerência que caracterizava a Constituição Federal de 1988: conferiu autonomia à Defensoria Pública da União (DPU), permitindo que a instituição se desenvolva independentemente das preferências variáveis do Executivo Federal. Até a entrada em vigor da referida emenda, apenas as defensorias públicas estaduais eram providas de autonomia, a qual fora anteriormente conquistada por meio da Emenda Constitucional nº 45, promulgada ainda em 2004.
Para a Defensoria Pública da União, a autonomia é elemento indispensável para o seu funcionamento regular. São defensores públicos da federais que, por exemplo, representam ribeirinhos que pretendem impugnar o licenciamento ambiental da Usina de Belo Monte. É natural que o trabalho competente desses profissionais do direito, ao exigir do Executivo a observância das leis em vigor, provoque incômodo na administração federal. Por que razão os mesmos gestores que são instados a superar obstáculos legais evidenciados por meio da ação da DPU atuariam no sentido da sua estruturação efetiva?
Ao conferir autonomia à Defensoria Pública, o constituinte reformador não violou de modo algum a cláusula pétrea da separação de poderes. A defensoria pública, como determina o próprio texto constitucional, exerce função essencial à Justiça, como faz o Ministério Público. Suas atribuições não são inerentes ao Poder Executivo, nem se classificam como tipicamente administrativas. Não há nenhuma razão funcional que recomende que a Defensoria Pública remanesça na estrutura do poder executivo. Talvez por essa razão, em 2013, a Emenda Constitucional nº 74 tenha sido aprovada pela quase unanimidade de deputados e senadores, contando, inclusive, com o voto dos partidos governistas. Por isso, causa estranheza que a Emenda tenha sido impugnada perante o Supremo Tribunal Federal pela presidente da República – atitude incompatível com a proteção perene, e não apenas eventual, dos direitos fundamentais das camadas mais pobres da população.
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A atribuição de autonomia à Defensoria Pública da União tornou a Constituição mais coerente internamente, fazendo com que a estrutura correspondesse mais adequadamente aos valores fundamentais positivados no texto constitucional. Apenas uma Defensoria Pública efetivamente estruturada pode garantir ao hipossuficiente verdadeiro acesso à Justiça; pode permitir que leve ao Judiciário demandas por responsabilização da Administração Federal; por atuar no sentido da redução das desigualdades sociais.
Ao declarar a constitucionalidade da EC 74, o STF não estará estimulando qualquer movimento de atribuição indiscriminada autonomia a outras carreiras. No caso da Defensoria Pública da União, a atribuição de autonomia não desestrutura o Poder Executivo, nem resulta em qualquer tendência de fragmentação. Trata-se, na verdade, de mera adequação de um aspecto específico do texto constitucional ao sistema e aos valores constitucionais fundamentais. Com a EC 74, a Constituição Federal ficou mais coerente.
Se outras emendas constitucionais, entretanto, vierem a ser promulgadas conferindo autonomia a outros órgãos ou entes que integram o Poder Executivo, o Supremo Tribunal Federal poderá verificar a sua constitucionalidade a luz de critérios como o funcional, o da coerência e o da integridade das funções estatais. Caberá verificar se se trata de função inerentemente executiva; se o texto originário da Constituição Federal possui princípios que são coerentes com a atribuição de autonomia; se a concessão de autonomia a um ente específico se insere em um movimento de fragmentação do Executivo que pode levar a sua desestruturação.
De acordo com esses e outros elementos atinentes à forma de aprovação da emenda, eventuais novas autonomias podem eventualmente ser consideradas inconstitucionais. A EC 74 foi promulgada em agosto de 2013, e até o presente momento nenhuma outra emenda constitucional concedendo novas autonomias foi promulgada. Passados dois anos, qualquer receio de que pudesse ser mal interpretada não se confirmou, verificando-se por parte do Legislativo prudência e responsabilidade na apreciação de outras demandas autonomistas.
* Advogado da Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais (Anadef) na ADIn 5296 e professor de Direito Constitucional (Universidade Federal Fluminense).
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