No Brasil, a percepção e o combate aos assédios moral e sexual cresceram significativamente nos últimos anos. Vários órgãos públicos lançaram campanhas, inclusive importantes cartilhas, contra essas tristes práticas. Entre eles podem ser destacados o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Tribunal Superior do Trabalho (TST). O CNJ instituiu, por intermédio da Resolução n. 351, de 28 de outubro de 2020, no âmbito do Poder Judiciário, a Política de Prevenção e Enfrentamento do Assédio Moral, do Assédio Sexual e da Discriminação. O TST, no dia 13 de outubro de 2022, lançou a “Cartilha de Prevenção ao Assédio Moral e Sexual – Por um ambiente de trabalho mais positivo”. Trata-se de um material didático que busca retratar, em linguagem simples, situações do cotidiano de trabalho que podem caracterizar assédio moral ou sexual.
Também houve um relevante movimento de aperfeiçoamento da legislação em torno do assunto. Provavelmente, o último capítulo das iniciativas normativas seja a edição da Lei n. 14.612, de 3 de julho de 2023, que altera a Lei n. 8.906, de 4 de julho de 1994, para incluir o assédio moral, o assédio sexual e a discriminação entre as infrações ético-disciplinares no âmbito do exercício da advocacia.
Por assédio moral se entende a repetição deliberada de gestos, palavras faladas ou escritas ou comportamentos que criem situações humilhantes e constrangedoras, capazes de causar ofensa à personalidade, à dignidade e à integridade psíquica ou física. Essa caracterização aproveita a definição presente na referida Lei n. 14.612/2023. Dois aspectos merecem destaque: a) condutas repetidas e b) desnecessidade de relação hierárquica ou similar (contemplando as modalidades de assédio vertical descendente, assédio vertical ascendente, horizontal e misto).
Já o assédio sexual consiste na conduta de conotação sexual, manifestada fisicamente ou por palavras, gestos ou outros meios, proposta ou imposta à pessoa contra sua vontade, causando-lhe constrangimento e violando a sua liberdade sexual. Essa definição também considera os termos da aludida Lei n. 14.612/2023. Ressalte-se que a reiteração da conduta não é imprescindível para a caracterização do assédio sexual. Um ato único ou isolado pode ser suficiente para configuração desse tipo de assédio.
O olhar cada vez mais atento para os abusos nos ambientes laborais aponta para a identificação de um comportamento distinto dos assédios moral e sexual. Trata-se do chamado “mobbing”. São comportamentos abusivos, sistemáticos e repetitivos, praticados por um grupo de pessoas contra um indivíduo (ou grupo). O traço distintivo é justamente a ação coletiva volta para humilhar com o objetivo de isolar e, no limite, forçar a vítima a deixar o local de trabalho.
Outro tipo de assédio observado com frequência preocupante é o institucional. Ocorre quando a própria organização, por meio de seus administradores, se utiliza de estratégias organizacionais de constrangimento, explícitas ou sutis, com o objetivo de melhorar a produtividade, reforçar indevidamente o controle ou demonstrar poder. Nesse caso, constata-se um processo contínuo de hostilidades estruturado por meio da política organizacional ou gerencial.
O assédio sexual está definido como crime no art. 216-A do Código Penal. O dispositivo em questão, introduzido pela Lei n. 10.224, de 15 de maio de 2001, afirma: “Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função. Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos”. O parágrafo segundo desse artigo determina o aumento da punição, em até um terço, se a vítima for menor de 18 (dezoito) anos.
O assédio moral ainda não foi caracterizado como crime. Parece, no entanto, que é só uma questão de tempo. Em 2019, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei n. 4.742-B, de 2001, acrescentando o art. 146-A ao Código Penal. O novo tipo penal adotou o seguinte formato: “Ofender reiteradamente a dignidade de alguém causando-lhe dano ou sofrimento físico ou mental, no exercício de emprego, cargo ou função”. O projeto em questão aguarda apreciação pelo Senado Federal.
Na seara das improbidades administrativas a temática colheu um sério revés. Com efeito, a recente alteração da Lei n. 8.429, de 2 de junho de 1992, operada pela Lei n. 14.230, de 25 de outubro de 2021, afastou a possibilidade de qualificar os assédios moral e sexual como hipóteses de improbidade administrativa.
Antes da edição da Lei n. 14.230, de 2021, os casos de assédio eram enquadrados no art. 11, inciso I, da Lei n. 8.429, de 1992. Esse enunciado normativo possuía a seguinte redação: “praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência”. Ocorre que esse comando legal foi expressamente revogado. Ademais, a improbidade administrativa pela violação de princípios da Administração Pública agora reclama a capitulação em um dos incisos do referido art. 11. Como não existe uma descrição de conduta compatível com os assédios moral e sexual nesse artigo da lei, as práticas agora escapam da qualificação como atos de improbidade administrativa.
Cumpre registrar a tramitação de projetos de lei no Congresso Nacional com o objetivo de equacionar esse grave problema criado pela associação de petistas, bolsonaristas e o Centrão, ao aprovar a Lei n. 14.230, de 2021, com o objetivo claro de dificultar o combate aos atos de corrupção e assemelhados.
Existe, ainda, uma nefasta consequência, ao menos no plano da Administração Pública Federal, com a descaracterização dos assédios moral e sexual como hipóteses de improbidade administrativa. Já não é mais viável punir com demissão os casos de assédio moral e sexual pela via da identificação de improbidade administrativa. A cadeia de raciocínio jurídico foi interrompida com a edição da Lei n. 14.230, de 2021. Antes, era possível caminhar pela seguinte trilha: a) assédio moral ou sexual é caso de improbidade e b) improbidade é hipótese de demissão. Agora, já não é mais possível enquadrar os assédios como situações de improbidade.
Atualmente, no âmbito federal, os casos de assédios, salvo situações muito específicas, se amoldam a condutas incompatíveis como a moralidade administrativa e impõem a aplicação da sanção de advertência (arts. 116, inciso IX e 129 da Lei n. 8.112, de 11 de dezembro de 1990). A disfunção é patente. Entre os advogados a lei define a pena de suspensão do exercício profissional para os assédios. O legislador já qualificou o assédio sexual como crime. No âmbito trabalhista, entende-se que os assédios configuram justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador (art. 482, alíneas “b” e “j”, da CLT) ou situação em que o empregado poderá considerar rescindido o contrato e pleitear a devida indenização (art. 483, alínea “e”, da CLT).
A ressalva das “situações muito específicas” decorre do eventual enquadramento da conduta como incontinência pública, escandalosa (art. 132, inciso V da Lei n. 8.112, de 1990) ou valimento do cargo (art. 117, inciso IX da Lei n. 8.112, de 1990). Ademais, em casos de extrema gravidade, para além de qualquer dúvida razoável, sob a influência do princípio da razoabilidade/proporcionalidade e considerando a cláusula “… que não justifique imposição de penalidade mais grave”, presente no art. 129 da Lei n. 8.112, de 1990, seria viável até a aplicação da penalidade administrativo-disciplinar extrema.
Recentemente, a Procuradoria-Geral Federal (PGF), da Advocacia-Geral da União (AGU), por intermédio do Parecer n. 00001/2023/PG-ASSEDIO/SUBCONSU/PGF/AGU, concluiu que a prática de assédio sexual caracteriza-se como transgressão disciplinar de natureza gravíssima punível com a demissão. A referida manifestação jurídica considerou expressamente o enquadramento nos arts. 117, inciso IX e 132, inciso V da Lei n. 8.112, de 1990.
A disfunção referida ganha contornos mais agudos quando se observa nas legislações estaduais, distrital e municipais um tratamento mais duro em comparação com a legislação federal. Observe-se, a título de exemplo, que o Distrito Federal determina a aplicação de suspensão entre 31 e 90 dias para os casos de assédios moral e sexual (arts. 192, inciso II, e 200, parágrafo primeiro, inciso II, da Lei Complementar n. 840, de 23 de dezembro de 2011). A reiteração da prática será apenada com demissão (art. 202, parágrafo primeiro, inciso II da Lei Complementar n. 840, de 2011).
A correção dessa distorção jurídica no tratamento dos assédios no plano federal exige as pertinentes providências legais. Um dos caminhos é a reafirmação dos assédios como hipóteses de improbidade. O outro caminho, não excludente em relação ao anterior, é a definição expressa dos assédios como infrações administrativas com penas mais acentuadas.
A opção de simplesmente alterar a legislação disciplinar federal possui um evidente inconveniente. Podemos ter a definição, em tese, de punições distintas para os casos de assédio quando observadas as legislações vigentes no âmbito dos Estados, Distrito Federal e Municípios. Assim, parece mais adequado, resolvendo a questão no plano federal e definindo uniformidade de tratamento federativo, inserir os assédios como hipóteses expressas de improbidade administrativa. O regramento legal da improbidade administrativa possui caráter nacional e, em regra, viabilizaria a aplicação da sanção administrativo-disciplinar mais grave.
No centro do debate acerca das diversas formas de assédio está o princípio-síntese das ordens jurídicas contemporâneas: a dignidade da pessoa humana. A humanidade demorou vários séculos para concluir e afirmar a maior das obviedades. Todo e qualquer ser humano, independentemente de qualquer adjetivação decorrente do gênero, cor da pele, orientação sexual, credo religioso, origem geográfica, posses materiais ou qualquer outro critério, carrega um valor inestimável e ostenta uma singular e admirável complexidade. Assim, devem ser afastadas do convívio social todas as formas de preconceitos, discriminações e opressões, incluídos os abusos caracterizadores dos assédios moral e sexual.
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