Ontem à noite, a internet brasileira estava em polvorosa porque o Intercept revelou trechos de conversas entre procuradores da Lava Jato e o ministro Sérgio Moro, obtidos por meio de uma possível invasão ao celular de um dos participantes das conversas. Provavelmente o procurador Deltan Dallagnol, a julgar pelas mensagens diretas trocadas com o então juiz Sérgio Moro e os grupos de que o procurador participava.
Inicialmente, houve quem comparasse esse vazamento ao que o hoje ministro Moro fez quando liberou a publicação de conversas que envolviam a presidente da República Dilma Rousseff e o ex-presidente Lula, acertando a ida de Lula para a Casa Civil para que ele passasse a ter foro privilegiado. A publicação da conversa gerou protestos que aceleraram o impeachment.
Devagar com o andor. Não é bem comparável. Para colocar a questão em perspectiva, vou fazer alguns tópicos aqui, gerados a partir de boas conversas com amigos hoje pela manhã.
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O Intercept pode publicar essas conversas? Não é crime?
A invasão da conta de alguém é claramente crime. A publicação de informações de conversas de interesse público, não. Não há qualquer indicação de que os jornalistas do Intercept tenham participado da invasão, que de mais a mais também parece ter ocorrido há diversos meses — as conversas vão até 2018. Se eles receberam as conversas de alguém, existe a garantia do sigilo da fonte. Não são obrigados a revelar quem lhes repassou, e mesmo quem lhes repassou não necessariamente é quem cometeu a invasão. A Constituição lhes garante o sigilo, de qualquer maneira.
Esse vazamento é comparável ao que Moro fez quando liberou as conversas entre Lula e Dilma?
PublicidadeNem de longe. No caso de Moro, as conversas foram liberadas oficialmente, não vazadas. Ele, mais do que ninguém, sabia que por lei não lhe cabia abrir conversas envolvendo autoridades com foro privilegiado. Fez um cálculo — as conversas reveladas sugerem que foi um cálculo político — e abriu. Questionado oficialmente, foi evasivo. Isso é completamente diferente, e em vários níveis pior, do que a divulgação de conversas roubadas. Como assim, divulgação por juiz é pior do que divulgação de produto de roubo? Simples: o juiz tem por função primordial garantir o exercício de direitos, dentro da lei. Alguém que invade uma conta não tem esse compromisso, muito antes pelo contrário. Se o Judiciário se permite fazer cálculos políticos para decidir quais direitos devem ser respeitados, independente do que eu ou você achemos das pessoas envolvidas, qual será o cálculo feito quando formos nós que precisarmos recorrer ao Judiciário?
O vazamento é comparável a Wikileaks ou Snowden, então?
Também não. Nesses dois casos, de repercussão internacional, uma pessoa de dentro de uma estrutura (um “insider”) abriu dados para denunciar irregularidades ocorridas dentro de um órgão onde trabalhava. Na legislação internacional, essa figura é conhecida como “whistleblower”, ou “soprador de apito” em português. É um sujeito que chama a atenção para problemas de que saiba por ofício e com os quais as autoridades responsáveis, seus superiores, tenham sido negligentes. Existe toda uma legislação e jurisprudência para proteger essa figura (no Brasil considerado “denunciante de boa fé”), que acaba sendo o elo mais frágil da proteção do interesse público. No caso das conversas reveladas ontem, aparentemente não existe essa figura — a menos que o próprio Dallagnol tenha feito vazar suas conversas, um cenário improvável. Ou seja: o informante do Intercept não está sujeito a qualquer proteção legal exceto o sigilo da fonte.
A que é mais comparável o vazamento, então?
O caso mais próximo que eu vejo nos últimos 20 anos é o do grampo do BNDES. Em 1998, apareceram fitas com conversas mantidas entre autoridades do governo Fernando Henrique Cardoso, discutindo aspectos do leilão que privatizou a telefonia. Por meses conhecia-se apenas trechos pouco comprometedores. Mas a reportagem que saiu há quase exatos 20 anos na Folha, pela mão do Fernando Rodrigues e da Elvira Lobato, tinha um título forte: “FHC tomou partido de consórcio no leilão das teles, sugerem fitas”. Essas fitas sugeriam a possibilidade de favorecimento do consórcio formado pelo banco Opportunity, de Daniel Dantas. Dez anos depois que as fitas oficialmente chegaram à Abin, um dos arapongas responsáveis admitiu que o grampo teria sido feito a pedido de empresários interessados no leilão. Mas isso não exatamente importaria do ponto de vista jurídico, exceto no tocante aos empresários. Ao Elio Gaspari, o professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho, da USP, admitiu a possibilidade de que os diálogos revelados poderiam ensejar abertura de procedimento por crime de responsabilidade contra essas autoridades, em que pese a ilegalidade da maneira como as fitas foram obtidas. Também houve consequências imediatas. Vale ler este artigo publicado na época pelo saudoso Alberto Dines para pensar em aspectos da cobertura desse caso.
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