Ao longo do tempo, no planeta Terra, o cristão perdeu o domínio sobre Sete Montes. E precisa reconquistá-los para reconstruir o planeta com base nos valores cristãos, para prepará-lo para o retorno de Jesus Cristo. Esses Sete Montes são: “Família, Religião, Educação, Mídia, Lazer, Negócios e… Governo”.
Esse é um resumo da estratégia que está por trás do que se batizou de “Teologia do Domínio”, ou “dominionismo” ou, ainda, “reconstrucionismo”. Embora não seja uma novidade na estratégia política evangélica, especialmente de algumas igrejas neopentocostais, nunca antes ela esteve tão presente no debate eleitoral como neste ano. E é essa estratégia que explica a entrada em campo de Michelle Bolsonaro na campanha pela reeleição de seu marido, o presidente Jair Bolsonaro. Uma estratégia que obrigou o principal adversário de Bolsonaro, Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, a também buscar criar um discurso para atrair ou, pelo menos não perder, os votos dos grupos evangélicos.
De acordo com Pietro Nardella-Dellova, doutor em Ciência da Religião pela PUC/SP, a narrativa criada em torno da primeira-dama e de Bolsonaro, balizada pela Teologia do Domínio, tem um apelo muito forte junto aos evangélicos.
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“É preciso tirar o diabo do poder”
“A Teologia do Domínio tem um abordagem pesada: é preciso tirar o diabo do poder. É preciso dominar o poder político fazendo com que os ungidos do Senhor tomem conta do poder político, que é o discurso da Michelle Bolsonaro. Segundo Michelle, havia demônios, havia pacto com demônios, eles estavam presentes no Planalto, e o Senhor ungiu o “mito”, o “Messias”, que foi batizado no Rio Jordão para libertar. Perceba a montagem da narrativa”, analisa Dellova. “Bolsonaro, então, mostra fotografias sendo batizado no rio Jordão, pelo pastor Everaldo (preso em 2020). Há um preparo do Bolsonaro para transformá-lo num homem ungido que veio para “libertar” e o papel da Michelle é a de serva do Senhor. O discurso, a narrativa são muito fortes.”
Como explica Nardella, pessoas que vivem no mundo neopentecostal realmente acreditam na ideia do ungido do Senhor.
“Não tocarás no Ungido do Senhor. São frases como essa que são pregadas diuturnamente nas igrejas. Então, na lógica da Teologia do Domínio, é preciso fazer com que os servos do Senhor tomem o poder. Tomando o poder, a nação será uma nação consagrada no sangue do Cordeiro.”
PublicidadeComo boa parte das estratégias que envolvem a ascensão de Jair Bolsonaro e da atual direita ao poder no Brasil, a “Teologia do Domínio” desenvolveu-se primeiro nos Estados Unidos, e de lá foi importada. O termo “reconstrucionismo”, com sentido semelhante, foi primeiramente sugerido por Rousas John Rushdoony, um pastor presbiteriano que morreu em 2001. Rushdoony pregava a necessidade de construção de uma educação cristã que visasse formar líderes com essa formação em todas as áreas estratégicas da sociedade.
Nos anos 1970, tais ideias foram incorporadas pelo Partido Republicano norte-americano, na busca por ampliar o seu eleitorado. É a partir daí que o reconstrucionismo desenvolve-se para o dominionismo ou Teologia do Domínio. E começa a ser marcado por um discurso extremamente nacionalista e ultraconservador. Em uma estratégia de guerra santa, é preciso conquistar os Sete Montes.
Os Sete Montes
Estabelecida a estratégia de guerra, então, é preciso conquistar e reconstruir os Sete Montes. A família seria somente aquela que cabe no conceito tradicional defendido: pai homem, mãe mulher e filhos. A religião somente as igrejas de matriz evangélica. A educação não laica. A mídia, empresas jornalísticas ligadas a esses valores e produzindo esses conteúdos. Lazer, o que incorpore tais ideais religiosos. Negócios feitos por fieis que possam financiar a estratégia. E governo, o que se identifique com tudo isso: criação de partidos, eleição de bancadas e de governantes que ou professem a fé ou aceitem ser ferramenta dela para se atingir tal propósito.
“Os interesses religiosos sempre estiveram presentes na política. A força da Igreja Anglicana na Inglaterra é um exemplo disso. Mesmo a força católica aqui”, observou o doutor em Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Joscimar Silva, em recente debate sobre o tema promovido pela Associação Brasileira de Pesquisadores Eleitorais (Abrapel). “Mas talvez nunca antes tenha sido ponto tão central do debate”, continua. Para Joscimar, na evolução da Teologia do Domínio, o governo Bolsonaro de fato permitiu a grupos com essa estratégia ocuparem espaços no governo, espaços de poder.
“A pregação do ódio religioso torna-se, assim, o principal ingrediente da campanha eleitoral”, emenda, ao Congresso em Foco, a presidente da Abrapel, Mara Telles. E, na sua avaliação, é esse o papel que se intensifica com a entrada de Michelle Bolsonaro na campanha de seu marido.
“Ela fala crentês”
A muitos, o comportado vestido verde-claro usado por Michelle na convenção do PL que homologou a candidatura de Bolsonaro lembrou as roupas da mesma cor utilizadas pelas mulheres na série “The Handmaid Tale” (“O Conto da Aia”), uma distopia na qual uma sociedade religiosa altamente conservadora passa a dominar os Estados Unidos.
Se tal comparação era involuntária no desejo de Michelle e da campanha de Bolsonaro, ela faz bastante sentido na prática. Aos olhos dos evangélicos radicais, Bolsonaro não seria um cristão de fato. Ele se declara católico. Seu batismo no rio Jordão – o mesmo onde Cristo foi batizado – em 2016 não é considerado oficial, mas mais uma pantomima política. Bolsonaro foi batizado pela pastor Everaldo, que foi preso mais tarde, em 2020, por desvios de recursos no Rio de Janeiro, nas mesmas investigações que levaram ao impeachment do ex-governador do estado Wilson Witzel. Para os estrategistas da Teologia do Domínio, ele seria uma ferramenta para atingir os objetivos almejados.
Já Michelle, não. “Ela é considerada uma mulher cristã de fato”, observa Mara. Michelle é adepta da Igreja Batista Atitude, que frequenta com assiduidade. Foi lá que ela aprendeu a Língua Brasileira de Sinais (Libras) e onde faz trabalhos voluntários. Michelle é tida como alguém ungida. Quando André Mendonça foi aprovado para o Supremo Tribunal Federal (STF), ela apareceu em um vídeo como se estivesse falando uma complicada língua estrangeira. É o que aqueles que acreditam chamam “falar em línguas”. Ou falar a língua dos anjos.
Para o núcleo evangélico de Jair Bolsonaro, a primeira-dama também ajudará na redução de resistências de alguns grupos do eleitorado brasileiro ao presidente. Na avaliação do cientista político Vinícius do Valle, diretor do Observatório Evangélico, o recorte do público reconhece Michelle como “uma deles”.
“O evangélico de verdade percebe que a Michelle é evangélica. Ela tem todo os signos, a corporalidade, o jeito de falar, inclusive o fato de ela ser casada com o presidente, que é visto como um homem chucro, alguém que muitas vezes, na visão do fiel, é alguém que fala besteira, não é tão próximo da religião assim. Essa é a história de vida de muitas mulheres evangélicas. Portanto, ela cria essa conexão tanto com os crentes quanto com as mulheres”, avaliou.
Vinícius também analisa que a primeira-dama buscará reverter e suavizar as falas polêmicas do marido.
“Ele [Bolsonaro] passou a ser visto como uma pessoa grosseira. A Michelle vai suavizar principalmente essa visão dele, de um “ar grosseiro”, de alguém que possui falas que envergonham os evangélicos. Ela entra suavizando as falas machistas, extremistas do Bolsonaro”.
Bem contra o mal
Diante da desvantagem que as pesquisas demonstram na disputa contra Lula, desde o início a cúpula da campanha de Bolsonaro começou a desenvolver a ideia de que deveria transformar a disputa eleitoral em uma guerra santa. Pesquisas internas mostravam que, diante de escândalos como o do Ministério da Educação, de compra de vacinas investigados na CPI da Covid e as denúncias de rachadinha, já não colaria tanto o discurso anticorrupção, embora tenha sido essa a estratégia adotada por Bolsonaro no debate da Band no domingo (28). Estabeleceu-se, então, a ideia de tentar colar em Lula e no PT uma pauta de ameaça aos costumes.
Em julho, em um ato do PL no Centro Internacional de Convenções, em Brasília, Bolsonaro pela primeira vez classificou a disputa com Lula de uma “luta do bem contra o mal”. Desde então, a campanha buscava trazer mais para perto Michelle. Bolsonaro, além de não ser evangélico, tem alguns problemas em seu perfil nesse sentido: está em seu terceiro casamento, fala palavrão. Michelle inicialmente resistiu. Acabou cedendo a partir da convenção.
Michelle entra na campanha do marido com o objetivo de tentar compensar as falas exageradas e polêmicas com o eleitorado religioso. Para além dos evangélicos, Michelle também busca atrair o público feminino. Para consolidar a busca de apoio aos dois grupos, a primeira-dama ainda contará com a participação da ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves. Damares é adepta da Igreja Batista Lagoinha, uma das que tem mais impregnada em si a Teologia do Domínio.
Nesse sentido, a adesão de Michelle à campanha traz alguns problemas colaterais. A estratégia precisa ser conciliada com os interesses políticos dos demais grupos ligados à campanha de Bolsonaro. No Distrito Federal, assim, tentou-se formar uma coalizão mais ampla agregando o governador Ibaneis Rocha, do MDB, e o ex-governador José Roberto Arruda. Para tanto, fechou-se apoio à candidatura da ex-ministra de Secretaria de Governo Flávia Arruda, mulher de José Roberto Arruda. Isso, porém, deixaria de fora Damares, que também tenta o Senado. Os grupos racharam, e Michelle embarcou na campanha de Damares.
No início da campanha oficial à Presidência, a primeira-dama discursou em tom eleitoral e fez uma oração, ao lado do presidente, em Juiz de Fora (MG). Na ocasião, ela disse que o marido é um “milagre de Deus” e pediu que os eleitores não deixem o país na mão de “inimigos”, em referência velada ao PT e ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que lidera as pesquisas de intenção de voto para o Palácio do Planalto.
“Essa campanha, mais uma vez, é um milagre de Deus. Começou em 2019 (2018, ano da facada), quando Deus fez o milagre na vida do meu marido, porque aqueles que pregam o amor e a pacificação atentaram contra a vida dele. Mas Deus é maior e a justiça do Senhor será feita”, declarou a primeira-dama, ao lado de Bolsonaro, no palco onde os dois discursaram no centro da cidade mineira. “Que Deus dê sabedoria e discernimento ao nosso povo brasileiro, para que não entregue o nosso País, a nossa nação tão amada por Deus na mão dos nossos inimigos”, disse.
Apesar de ser o candidato favorito do grupo religioso, o chefe do Executivo já foi melhor visto pelo público. Em 2018, Bolsonaro se elegeu com o apoio de cerca de 80% dos evangélicos. Atualmente, Bolsonaro tem 52% das intenções de voto dos protestantes, contra 28% de Lula.
Segundo o diretor do Observatório Evangélico, a variação de apoio se dá por dois pontos principais: fator econômico e politização do grupo.
“Ele está em busca desses votos que faltam para ele garantir posição, mas chegar no nível da última eleição é uma coisa muito difícil porque o Bolsonaro tem uma rejeição muito forte porque a economia vai muito mal e a economia pega no público evangélico. Eles fazem parte do segmento religioso que mais tem pessoas de baixa renda, que mais têm famílias em vulnerabilidade social. Outro impacto é o fato dele estar sempre politizando esse público. Isso faz com que o apoio passe por um desgaste”, disse.
Armadilha
Para Mara Telles, responder à estratégia de “guerra santa” trazendo para si também a questão religiosa poderá ser uma “armadilha” para a campanha de Lula. Nas últimas semanas, o candidato do PT tem criado propagandas e ações específicas para esse grupo. “Isso pode ser uma armadilha perigosíssima para Lula”, considera a presidente da Abrapel.
O segmento evangélico na sociedade é grande, e não pode ser desprezado. Cerca de 70 milhões de eleitores. Mas nem todos eles estariam alinhados com a ideia da Teologia do Domínio. Essa vertente de necessidade de ocupação política dos espaços e de redução do caráter laico dos governos é defendida somente por uma minoria. Uma minoria que jamais irá enxergar Lula como um representante legítimo. Assim, ao trazer a questão religiosa para a sua campanha, Lula pode afugentar quem não concorda com isso, ao mesmo tempo em que provavelmente não irá agregar quem concorda.
“É impossível para Lula converter esse grupo”, considera Mara. “Ao trazer isso para a sua campanha, Lula aceita a agenda de Bolsonaro. Cai numa armadilha”, continua. “Lula não deveria cristianizar a política, tentando converter grupos que são inconversíveis”.
Para Mara, Lula deveria centrar-se em temas laicos que também acabam sendo importantes para a população evangélica. Especialmente entre a população mais pobre, como a questão econômica, a fome, a inflação, a sensação de maior prosperidade que havia em seu governo.
“Não se pode dizer que Lula não tenha em seu governo deixado de lado os evangélicos”, observa ela. Inclusive, o partido de seu vice-presidente, José Alencar, o PRB, foi a entrada inicial da Igreja Universal do Reino de Deus na política. “Para Bolsonaro, o debate religioso é uma forma confortável de levar o debate para esse ponto, em vez da discussão de tudo o que ele destruiu em seu governo”, diz a cientista política. “Está aí a armadilha”.