Lula 1 e Lula 2 deixaram como marca um governo que, sem romper contratos ou ameaçar os interesses fundamentais do status quo, fez o país crescer e foi capaz de distribuir riquezas em favor dos mais pobres. Qual será a marca do terceiro governo Lula?
O discurso de posse do novo presidente da Associação Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), Ricardo Cappelli, oferece pistas para retomar esse caminho de forma diferente e criativa, agora com ênfase na inovação. Apresento, mais adiante, o vídeo completo do pronunciamento e alguns dos seus principais pontos, tomando a liberdade de fazer antes algumas considerações.
Em primeiro lugar, o discurso de Cappelli merece atenção, pelo seu valor intrínseco. É uma ode ao que na economia costuma ser chamado de desenvolvimentismo. Desenvolvimentismo tem a ver com a crença de que cabe ao Estado um papel relevante na promoção do crescimento econômico e na criação de oportunidades de emprego e de renda. O seu oposto mais frequente é a versão tatibitati de liberalismo disponível à farta em editoriais de jornalões e nas, digamos, “análises” da maioria dos comentaristas econômicos pátrios.
Leia também
Aspas necessárias porque a visão que tais vozes exalam ignora o mundo real, o de ontem e o de hoje, circunscrevendo-se em geral ao estreito horizonte dos operadores do mercado financeiro. Além da alergia desmedida ao PT e aos petistas, prevalecem aí preconceitos vários. Dou três exemplos, entre tantos outros possíveis: (1) todo investimento público é mal visto; (2) juros altos (fonte de retorno barato e sem risco) são encarados com naturalidade, mesmo quando elevam a dívida pública a níveis astronômicos; (3) cultuam-se figuras como Paulo Guedes e Mailson da Nóbrega e há implacável implicância contra o atual titular da pasta, Fernando Haddad, a despeito dos bons resultados que este já apresentou em apenas um ano e do péssimo legado notoriamente deixado pelos outros dois.
Uma segunda razão para levar em conta o que disse o novo presidente da ABDI está no próprio autor do discurso. Após atuação exemplar como interventor na segurança pública em Brasília e ministro interino do GSI, Ricardo Cappelli transformou-se em estrela de primeira grandeza no PSB, partido do vice-presidente Geraldo Alckmin. Prova disso é que os dois auditórios do Ministério do Planejamento, com capacidade total para cerca de 450 pessoas, ficaram pequenos para sua posse, na última quinta-feira (22). Em um deles, as pessoas se espremiam para acompanhar a solenidade em um telão. No outro, desfilaram algumas das mais poderosas figuras da república, incluindo dez ministros, três governadores, prefeitos e vários parlamentares federais.
Cappelli empresta ao debate econômico clareza, tornando-o acessível a não iniciados, e dramaticidade, dando-lhe sentido político militante. Identifica na luta por um desenvolvimento inclusivo e liderado pelo Estado o grande conflito nacional, que atraiu a ira dos setores conservadores contra Getúlio e Juscelino, no passado, e Lula, no presente. “As críticas são exatamente iguais”, destacou.
PublicidadeDevolve aos críticos a acusação de dinossauros, invocando as práticas contemporâneas das nações mais ricas do planeta como suporte para a defesa de uma política industrial ativa, a exemplo do que preconiza a Nova Indústria Brasileira (NIB), anunciada pelo governo no final de janeiro.
Referindo-se aos R$ 300 bilhões prometidos no âmbito dos investimentos na NIB, afirma: “Os Estados Unidos estão botando US$ 1,9 trilhão no processo de retomada da economia norte-americana. A União Europeia está colocando US$ 1,7 trilhão no processo de retomada da economia europeia. O Japão está botando 1,5. E o Brasil não pode botar US$ 60 bilhões?”
Na sequência, rebate os argumentos dos críticos da NIB. Ressaltarei aqui os dois principais: “Vai causar desequilíbrio macroeconômico. Vamos aos números. O Brasil tem inflação dentro da meta, juros em queda, a menor taxa de desemprego dos últimos nove anos, recorde histórico do superávit comercial batendo quase US$ 100 bilhões [em 2023], reservas internacionais de US$ 353 bilhões, que nos protegem contra qualquer choque externo. Então de onde vem o impacto fiscal, o desequilíbrio macroeconômico? Não se sustenta o argumento. Esse é um argumento de fundo ideológico, que diz respeito à disputa sobre o destino do Brasil.”
Trata em seguida da ideia de que a NIB é “a nova velha política”, “como se nós todos aqui fôssemos dinossauros defendendo a volta do velho”. Para rebater a crítica, lança mão do FMI, ironizando: “Não é nenhuma organização comunista perigosa, é o Fundo Monetário Internacional”.
Segundo o relatório de 2023 do FMI, publicado em janeiro, foram anunciadas — prossegue Cappelli — no ano passado “2.500 novas políticas industriais”: “China, EUA e União Europeia são responsáveis por 48% dessas políticas, que têm impacto sobre 71% do comércio global. Isso é velho? Os que criticam querem colocar uma bola de ferro no pé do Brasil na corrida que está no mundo pela neo-industrialização rumo a nova industrialização. A América do Norte é quem mais usa as compras públicas como instrumento de política industrial.”
“Qual é a velha política que eles não querem que a gente reproduza? A velha politica que em 1973 criou a Embrapa, que fez da agricultura brasileira hoje potência mundial. Essa é a política que não querem que volte? É a política que em 1969 criou a Embraer e, , junto com o ITA e o CTA, fez da Embraer a terceira maior empresa do setor no mundo? É isso que não pode voltar? Esse é um debate sobre o destino do Brasil, aonde a gente quer chegar. É o debate mais importante do Brasil neste momento.”
Inovação, sustentabilidade e competência digital, continua, devem ser a tônica da nova política industrial. “Mas, para isso, precisamos ter a coesão da nação num rumo para o país”. Aspecto-chave, no seu entender, é um entendimento comum entre os órgãos de controle, tais como a CGU, o TCU e o Ministério Público, para que “o gestor público tenha coragem de investir em inovação”, que é algo por natureza incerto, requer longo prazo de maturação e “às vezes dá errado”.
Volta então à tona com sua tese central: “Quem faz isso no mundo inteiro é o Estado. O iPhone tem 12 vetores centrais que foram produto de pesquisa da agência de pesquisas avançadas em defesa norte-americana. Não haveria iPhone, não haveria iPad, não haveria o sucesso genial da Apple sem a presença decisiva do Estado norte-americano investindo em tecnologia. Nós precisamos fazer com que o setor público perca o medo de investir em inovação. Inovação é tentativa, erro e acerto.”
Por último, repetiu o seu pensamento, bastante conhecido dos leitores do Congresso em Foco, do qual Cappelli foi colunista durante vários anos, sobre a necessidade de termos uma democracia que ponha comida na mesa dos pobres: “Quando a democracia se mostra incapaz de melhorar a vida das pessoas, elas param de acreditar na democracia”.
Fique com a íntegra do discurso do novo presidente da ABDI:
Veja também:
Os bastidores do 8 de janeiro, segundo Ricardo Cappelli