Maís Moreno *
A discussão sobre o papel das primeiras-damas tem ganhado destaque no Brasil. Trata-se de uma figura associada a dois estereótipos: acompanhante do Chefe do Executivo em eventos oficiais e defensora de causas sociais. Ambos são reflexo do tradicional imaginário sobre os papéis sociais que reproduz a atividade do cuidado, historicamente destinada às mulheres.
Não há nada de errado em cuidar. Ao contrário. Porém, é importante que a atividade do cuidado seja uma escolha e tenha nela o devido valor reconhecido.
Quando alguém, em um casal, resolve encabeçar um grande projeto na iniciativa pública, isso afeta a vida familiar. Portanto, a candidatura a um cargo no Poder Executivo pressupõe uma negociação doméstica. Afinal, embora não tenham o nome na urna, uma primeira-dama ou um primeiro-cavalheiro serão convocados a assumir um papel de apoio.
Em sua maioria, hoje esse papel de suporte recai sobre as mulheres, já que os homens ocupam 88% das prefeituras e 92% dos governos estaduais, são casados, e o IBGE aponta que a maioria dos núcleos familiares são compostos por casais heterossexuais. Essas mulheres poderiam, em tese, ter dito “não” aos projetos de seus maridos. Ao dizer “sim”, elas podem aderir aos papéis clássicos de primeira-dama, ou reinventar as fronteiras da função.
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Quando as mulheres optam pelas posições já assimiladas socialmente, não se cogita discutir a necessidade de regulamentar essa função. Elas ficam ali, graciosamente, oferecendo seus serviços, mesmo que realizem coisas tecnicamente complexas e de altíssimo valor social. Como estão cuidando, incomodam pouco.
Porém, quando optam por sair do campo da assistência ou dos cuidados maritais, os costumes gritam. E, veja, são os costumes que se incomodam. Não a lei.
Mas sempre há quem enfrente os incômodos. A primeira-dama dos EUA, Jill Biden, continuou a atuar como professora mesmo após a ascensão do marido à Presidência. Impossível não lembrar também de Eleanor Roosevelt. No Brasil, agora é Janja quem provoca a interessante discussão. Pode haver estranhamento e incômodo, mas ilegalidade não há. Aliás, não há, no Brasil, sequer regulamentação sobre o papel de primeira-dama. Deveria existir? Em quais bases?
Nepotismo? Não é. O Supremo Tribunal Federal tem jurisprudência majoritária para afastar a aplicação da Súmula Vinculante 13 (que proíbe a nomeação de parentes de autoridades públicas para cargos comissionados na administração pública direta e indireta) a cargos políticos. É o que permite que primeiras-damas assumam projetos e programas sociais.
Remunerar? Parece-me possível. Há mais barreira ideológica do que limitação jurídica ou orçamentária. Ou alguém ousaria dizer que Ruth Cardoso, por exemplo, não prestou serviços ao país com excelência tal que teria sido justa a sua remuneração?
Se não é nepotismo e é possível remunerar, quais seriam as competências da primeira-dama? Teria ela um Ministério? De novo, as escolhas. O que pode e não pode fazer a primeira-dama? Está aí o coração da questão.
Há também os riscos de uma atividade pública regulamentada. Consta que recentemente foi desaconselhada a regulamentação da atividade de primeira-dama presidencial justamente por isso abrir flanco para uma exploração política do chefe do Poder Executivo. Bem, sem ônus, sem bônus. Sem regulamentação, é difícil sustentar, por exemplo, a manutenção de uma equipe destinada a atingir os objetivos determinados por uma primeira-dama. O procedimento de regulamentação, se feito com debate público ampliado, poderia ajudar a traduzir, ao menos, o que a sociedade enxerga e espera desse papel.
Não faltam lições de outros países para subsidiar o debate sobre a regulamentação. No Chile, por exemplo, desde a campanha presidencial, Gabriel Boric e sua companheira, Irina Karamanos, criticaram os estereótipos do papel clássico da primeira-dama. Em março, uma resolução instituiu o “Gabinete Irina Karamanos”, alterando funções da primeira-dama e institucionalizando algumas missões estratégicas e programáticas de políticas públicas. Alvo de críticas pela oposição, especialmente pelo nome do Gabinete, a resolução foi eliminada pelo Executivo, e o Gabinete recebeu o nome de Coordenadoria Sociocultural da Presidência. Após nove meses, Karamanos renunciou às funções da primeira-dama, mas deixou um legado de reflexão sobre o seu papel.
Na França, o presidente Emmanuel Macron anunciou em 2017 a oficialização do cargo – algo inédito no país. Por meio do “Estatuto da Esposa do Chefe de Estado”, a presidência francesa estabeleceu o papel e as funções da primeira-dama, detalhando seu papel e suas missões. De novo, a reação: parte da população não foi favorável à criação do cargo e à mudança na Constituição, e o governo recuou. Mas foi publicada uma Carta de Transparência detalhando o papel público de Brigitte Macron no governo, o que já é um avanço.
Nos EUA, as missões da primeira-dama são previstas no US Code, de 1978, o que lhe permite possuir gabinete, fazer viagens internacionais em nome dos interesses do Estado e defender causas públicas. É uma função simbólica, o arcabouço de regulamentarão é escasso, e a primeira-dama não é remunerada.
Observando a realidade de 15 países, em diferentes regiões do planeta (Américas, Ásia, Europa, África e Oceania), é possível notar que em geral as nações não regulam o papel e as funções das primeiras-damas ao redor do mundo. Em alguns casos, ainda que exista um gabinete específico para a primeira-dama, não há regulamentação satisfatória sobre os desafios que envolvem essa função. Conclusão: apesar da importância do papel dessas muitas mulheres (e alguns homens, os primeiros-cavalheiros), e da revisão paulatina de certos paradigmas, não há país que lidere a discussão sobre o tema de maneira satisfatória e atualizada.
O debate em torno do papel das primeiras-damas é rico, inclusive porque permeado por muitas indagações e pouquíssimas certezas. Há, contudo, dois pontos evidentes: primeiro, a revisão do papel da mulher na sociedade implica a revisão dos papéis das primeiras-damas; segundo, é preciso fazer essa discussão consciente dos estereótipos de gênero que historicamente limitaram a atuação das mulheres, sobretudo na esfera pública. Nesse contexto, o debate sobre a regulamentação dessa função se torna um passo desejável e, mais do que isso, relevante para nossos avanços civilizatórios.
* Maís Moreno é mestre em direito do Estado pela Faculdade de Direito da USP, especialista em infraestrutura pela Harvard Kennedy School e sócia da Manesco Ramires Perez Azevedo Marques Sociedade de Advogados.
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