Em um determinado momento do governo anterior, um ministro que então estava em evidência me chamou para um café. Era um momento em que estava deixando uma redação, ainda não sabia que destino tomar, e alguém me indicou a ele para uma eventual assessoria. Sou do tempo em que jornalista não recusava convite de autoridade para uma conversa. Aliás, no fundo até será um pouco sobre isso que iremos falar por aqui. Mas, segue o fio.
O tal ministro começa, então, a sondar minhas ideias. E a apresentar as suas. Até que, em determinado momento, ele diz exatamente o seguinte: “Olha, eu não estou aqui para roubar. Não estou aqui para desviar dinheiro público. Não estou aqui para enriquecer. Eu estou aqui para me vingar”.
Depois do pulo da cadeira, eu perguntei: “Se vingar de quê?”. E ele: “Me vingar dessa esquerda, desses comunistas, que me prejudicaram a vida inteira, tentaram me ridicularizar. O que você acha desse projeto?”
Com toda a sinceridade possível, eu disse: “Eu acho que não dará certo. O senhor aqui não é ministro somente do segmento da sociedade que o elegeu. Muito menos ministro do segmento muito menor de posições mais radicais. O senhor está aqui para realizar políticas públicas para todo mundo. Que precisarão saber respeitar e atender quem discorda do senhor, quem é minoria. Se o senhor não fizer assim, eu acho que o seu projeto não vai dar certo”. Ele ouviu, me ofereceu um bombom que havia em um jarro de cristal na mesa de centro, abriu a porta e me disse “obrigado”. Como deve parecer evidente, depois disso nunca mais nos falamos. E, de fato, o projeto de “vingança” do tal ministro não durou muito tempo mais.
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O episódio pode significar um ponto agudo, mas que é parte de um grande problema. Que a sociedade brasileira vai precisar encarar com urgência antes que acabe por esgarçar completamente as bases da sua democracia. O artigo 37 da Constituição estabelece os princípios que devem ser seguidos por todos os administradores públicos, em todas as suas esferas. Esses princípios são os seguintes: “legalidade, moralidade, publicidade, eficiência e impessoalidade”. Precisamos encarar o fato de que este último, a impessoalidade, anda sendo esquecido.
O princípio da impessoalidade estabelece que o servidor público precisa, sempre, colocar os interesses coletivos acima dos seus interesses pessoas. Fica claro, portanto, que no exercício das suas funções, a sua tarefa não pode atender a nenhum tipo de aversão pessoal ou partidária. O servidor público não pode beneficiar ou prejudicar alguém em nome das suas preferências políticas ou ideológicas. Portanto, não pode caber a nenhum objetivo público um projeto de vingança política.
O problema é que ao longo do tempo fomos radicalizando um processo que ultrapassou a natural disputa política de qualquer democracia para se transformar em uma guerra. Onde adversários foram se tornando inimigos. Onde obter maioria foi deixando de ser o processo natural de alternância de poder para virar um jogo de destruição, de submissão do derrotado, quando não de eliminação mesmo.
E a administração foi deixando de ser pessoal. Ela foi ficando cada vez mais e mais partidária. Na lógica do mundo virtual, que se organiza por bolhas, o Brasil passou a ser administrado por bolhas. Somente para as suas bolhas. Não há progresso democrático possível assim.
Por mais educado e suave que possa parecer o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), na comparação com esse outro antigo ministro, sua fala no evento da União Nacional dos Estudantes (UNE) foi também um grave desvio do princípio da impessoalidade.
Se na sua reação Barroso dissesse: “Nós derrotamos o risco de ruptura do Estado Democrático de Direito”. Ou: “Nós garantimos a vitória da democracia”. Qualquer frase desse tipo seria aplaudida. E Barroso estaria tão somente reafirmando a defesa de coisas que, assim como o princípio da impessoalidade, são obrigação de qualquer servidor público preservar.
Ao responder “Derrotamos o bolsonarismo”, Barroso personalizou a sua ação no STF e no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que presidiu antes do atual presidente, Alexandre de Moraes. Deixou margem a que se entendesse que a sua tarefa na Suprema Corte se vinculou a promover a derrota de determinado candidato e sua corrente política, e não de garantir a lisura do pleito e a plena democracia.
Há quem argumente: “Ah, mas não há bolsonarismo democrático”. Bem, há bolsonarismo democrático, sim, se ele cumprir os requisitos legais para se candidatar e disputar as eleições. E se aceitar disputar tais eleições dentro das regras. Se aceitar o resultado final delas. Nesse sentido, houve bolsonarismo legal nas eleições do ano passado. Que ajudou a referendar o pleito que foi vencido pelo presidente Lula. Toda vez que se tentou extrapolar isso, colocando o jogo democrático em risco, isso foi evitado e punido pela Justiça Eleitoral. Muito corretamente.
E, aí, voltamos lá ao início. Às razões pelas quais um jornalista deve aceitar o convite para qualquer conversa. Seja com alguém que, como cidadão, concorda, seja o contrário. Porque o jornalista, embora não seja um servidor público, também faz um trabalho voltado ao público.
Não se espera que um médico deixe de atender, ou atenda mal, um paciente porque ele é petista ou bolsonarista. Não se espera que um advogado se recuse a deixar quem quer que seja sem defesa.
Não podemos naturalizar uma situação que transforme a convivência política de um país e a sua administração numa guerra de trincheiras. O retorno do respeito à diferença e da tolerância são urgentes.
Os versos do antigo samba de Noel Rosa parecem sempre fazer mais sentido para nós: “E o povo já pergunta com maldade, onde está a honestidade?”. Mas talvez fosse o caso de pedirmos licença a Noel para perguntar um pouco: “Onde está a impessoalidade?”
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