Perdi as contas de quantas vezes fiz a seguinte afirmação: a efetiva solução dos grandes problemas brasileiros depende da conscientização, organização e mobilização dos segmentos populares (as reais vítimas das mazelas). Não é preciso muito esforço ou ciência para apontar esses problemas. Basta consultar o artigo terceiro da Constituição. Lá são encontrados: a) pobreza; b) desigualdades sociais (abissais, digo eu) e c) opressões e discriminações (de várias modalidades e intensidades).
Os maiores entraves ao desenvolvimento socioeconômico do Brasil não serão superados pela ação messiânica de salvadores da Pátria (de esquerda, de centro ou de direita). Não serão heróis ou iluminados os responsáveis pelo equacionamento de nossas maiores dificuldades. Também devem ser devidamente afastadas as vestais e os paladinos da moralidade, notadamente quando de fachada e sem nenhuma correspondência com as peripécias praticadas ao longo da vida.
O que faz um governo, como o atual, que não está assentado na mobilização popular e, portanto, não serve como instrumento dos interesses da grande maioria da população? O governo, em seu sentido mais geral, sem prejuízo de certos conflitos internos, se equilibra, concede, cede e tergiversa. Em última instância, não atua, nem pretender atuar, nas causas estruturais das grandes mazelas nacionais. Limita-se ao discurso de compromisso com as causas populares, mas não vai além do discurso, com exceções de alcance limitado. A situação lembra a famosa advertência de Maquiavel: “… vendo os grandes não lhes ser possível resistir ao povo, começam a emprestar prestígio a um dentre eles e o fazem príncipe para poderem, sob sua sombra, dar expansão ao seu apetite”.
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Não resta dúvida que o atual governo reclama uma importante deferência democrática. As trevas da barbárie, com todo tipo de atraso embutido, estão à espreita com força e alta capacidade de articulação política. Ocorre que a manutenção do ambiente democrático é pouco, muito pouco, diante do oceano de iniquidades socioeconômicas. A democracia formal é somente um meio, único aceitável, para a criação de um ambiente político de realização da democracia socioeconômica ou substancial.
Entretanto, o que todos assistiram, nos primeiros sete meses do governo Lula 3, e parece que o passar do tempo não alterará substancialmente o quadro, justamente porque as raízes profundas de nossos problemas não serão tratadas, é um exercício curioso de equilíbrio entre os movimentos e interesses do Centrão e das classes dominantes, notadamente o mercado financeiro. Não há surpresa aqui. Nosso principal mandatário e o seu núcleo de poder mais próximo já deram mostras que não possuem compromisso visceral com os interesses populares. O primeiro compromisso é com um certo projeto de poder. Se ele puder ser efetivado com alguma melhora (mínima, frise-se) nas condições de vida da maioria do povo, ótimo. Se não puder, paciência.
Nesse quadro, pintado em rápidas pinceladas, o Centrão deita e rola. Chantageia o governo. Impõe nomeações. Mantém o “orçamento secreto” por vias transversas. Implementa uma pauta legislativa alinhada com os interesses das elites nacionais e internacionais.
O mercado financeiro, notadamente por seus fiéis serviçais (velhos e novos), mantém e aprofunda os principais mecanismos de expropriação da maioria da sociedade. O rentismo atinge níveis inimagináveis, sobretudo diante da conjuntura econômica experimentada. Os mais importantes instrumentos de perpetuação do regime são reformatados (como no arcabouço fiscal) e ajustados pontualmente aqui e ali.
A reforma tributária da PEC 45/2019, cantada em verso e prosa na grande imprensa, merece uma ponderação especial. É possível afirmar, sem medo de errar, que a aprovação da referida reforma é um bom e emblemático retrato do Brasil atual. Os interesses socioeconômicos mais poderosos e articulados formam sua espinha dorsal. O empresariado de grande porte não cansa de falar em simplificação, eliminação de distorções, redução de custos operacionais, eficiência econômica e modernização das incidências tributárias. O tratamento diferenciado e privilegiado para o capital financeiro e o agronegócio exportador foram cuidadosamente consagrados. Os interesses populares com justiça fiscal e distribuição equânime da carga tributária foram contemplados de forma secundária, com extensão e intensidade nitidamente insatisfatórias.
Os próximos anos, portanto, serão substancialmente iguais aos anteriores. Indicadores socioeconômicos melhoram um pouquinho em certos setores e pioram levemente em outros segmentos. Um quadro ideal para uma falsa polarização, se consideradas as questões estruturais e de fundo. Munição de baixa qualidade para se apontar avanços ou para denunciar retrocessos não falta e não faltará.
E o povo? E os interesses populares? Para esses restam algumas migalhas, algumas políticas limitadas e secundárias. Um governo de alguém com origem nas camadas mais sofridas da população brasileira, assim como um partido que se apresenta, a partir do nome, como dos trabalhadores, não significa necessariamente um instrumento dos mais legítimos interesses populares. Infelizmente, estamos longe, bem longe, de um governo efetivamente emergente e voltado para os anseios da grande maioria da população brasileira.
Nossa história, incluída a mais recente, revela uma sucessão de governos, com rostos, nomes e colorações partidárias diferentes, que representam apenas variações mais escancaradas ou mais camufladas dos poderosos interesses das elites dominantes. É assim com Lula 3, como foi assim com Bolsonaro, Temer, Dilma 2, Dilma 1, Lula 2, Lula 1, FHC 2, FHC 1, Itamar, Collor, Sarney e os anteriores. O Brasil ainda está por conhecer um governo que seja realmente um instrumento dos interesses populares.
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