Ricardo de João Braga *
A crônica diária do governo Bolsonaro é uma novela recheada de episódios midiáticos. Contudo, para além desses fenômenos, deve-se atentar para o impacto que ideologização inoportuna, experimentalismo político e belicismo comunicacional produzem em elementos mais estruturais da sociedade. Há mudanças em curso importantes de se reconhecer, e discutimos algumas aqui.
O primeiro fenômeno refere-se à crise da democracia representativa. Desde os anos 1970 a democracia vem experimentando, nos países centrais e naqueles de democracia mais tardia como o Brasil, quedas nas taxas de participação eleitoral e filiação partidária, além de erosão da confiança dos cidadãos nos políticos e nas instituições. Ao contrário da crise democrática do entre guerras (1919-1939), que levou a movimentos totalitários em vários países, atualmente a crise se expressa na crítica à prática da democracia, contudo persiste um razoável apoio aos seus princípios. Como afirmam Dalton e Welzel[1], os cidadãos deixaram de ser passivos e leais ao sistema e se tornaram assertivos e críticos, sendo voz, participação e expressão de valores em ascensão.
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Como é da natureza dos fenômenos estruturais, tal degradação da democracia representativa caminha lentamente, mas aqui e ali um fenômeno especialmente ruim produz um pico de corrosão na confiança na política. A corrupção do mensalão e do petrolão, a crise econômica e social, o impeachment de Dilma e as prisões de políticos alimentam a erosão.
No governo atual, por sua vez, o estilo sectário de liderança, a retórica de agressão, o foco em questões secundárias e os ataques à própria política como diálogo levam água a esse moinho funesto. Tal peça teatral corrosiva vem acompanhada de desemprego sem trégua e serviços públicos sem horizonte de melhora. A campanha eleitoral vitoriosa baseou-se no ataque à política, e agora o grupo no poder mantém a mesma estratégia. Assim, se o governo fracassar, gerará frustração e mais descrédito para a política devido às promessas não cumpridas; se tiver sucesso, seguindo na estratégia de atacar a política, também enfraquecerá a democracia.
2020 deve nos apresentar campanhas eleitorais ainda mais personalistas e personalizadas. Caso não seja feita a sempre improvável reforma das regras eleitorais e partidárias, é de se esperar que o eleitor fragmente mais ainda o quadro político ao despejar suas frustrações num sistema sem regras saudáveis de ordenamento. Deveremos assistir a novos picos de votos brancos, nulos e abstenções, que são as manifestações formais de descrédito no sistema político. O cenário não é auspicioso.
O segundo elemento refere-se à galvanização de todo um “ecossistema” de valores e atores em torno da educação. A excentricidade das posições do governo e seu foco em questões secundárias acendeu o alerta vermelho em todos aqueles que se preocupam em construir uma melhor educação no país.
Um grupo extenso de pesquisadores, profissionais da área, gestores de esferas estadual e municipal, políticos atuantes na educação e movimentos políticos têm (re)apresentado problemas, diagnósticos e alternativas; da mesma forma, buscam articular fóruns de discussão e proposição. Não se trata da questão pontual da defesa da universidade pública (que certamente tem pontos a melhorar e também boas experiências e iniciativas para apresentar), mas de realmente pensar o sistema educacional como um todo, em perspectiva internacional, e buscar caminhos para o Brasil. Formação de professores inicial e continuada próximas à vida escolar, melhores remuneração e condições de trabalho, carreiras estruturadas recompensando experiência e mérito, apoio à transformação da base curricular comum em currículos, foco na educação infantil, avanços na reforma do ensino médio, manutenção e aprimoramento do Fundeb são algumas questões discutidas e defendidas.
Óbvio que todo esse “ecossistema” sempre esteve lá, mas agora foi chamado a agir em busca da sobrevivência de ideias e projetos que adquiriram bastante consenso na área e são ou ignorados ou atacados pelos movimentos ideológicos inconsequentes promovidos pelo Ministério da Educação. Não por acaso, a própria centralidade do MEC no processo de gestão e formulação das políticas de educação no Brasil parece ter-se fragilizado, devido à busca natural dos atores por outros fóruns onde sejam possíveis o diálogo e a construção conjunta. Quiçá tal movimento na educação, passada esta fase de defesa e sobrevivência, possa frutificar no futuro incentivado pela coesão e atividade do presente.
Um terceiro elemento refere-se ao maior protagonismo do Congresso na definição de políticas públicas e na feição do governo, o que implica o seu reposicionamento no sistema de poder. Mais protagonismo significa responsabilidade, uma transformação que desafia e se apresenta envolta em incerteza.
Sem dúvida o Legislativo nacional padece de vários problemas, que vão da representatividade frágil aos escândalos de corrupção presentes em sua história. Contudo, um ponto central é o próprio papel governativo do Congresso no quadro mais amplo das instituições políticas. De Fernando Henrique até o impeachment de Dilma, o Legislativo comportou-se como polo passivo na definição das políticas públicas. A fragmentação partidária, por exemplo, pôde chegar ao ponto absurdo de hoje devido ao pouco protagonismo dos partidos e do próprio parlamento. Ideias como o parlamentarismo, meritórias em princípio, geram entre nós dúvida sobre a capacidade do Legislativo diante da missão, pois que nunca assumiu peso substancial dos bônus e ônus do governo, sempre escudado atrás do presidente da República.
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Agora, diante da recusa do governo Bolsonaro em interagir com o Congresso dentro do arranjo do presidencialismo de coalizão, e também devido à estratégia até o momento suicida de praticamente abandono de reformas necessárias à própria sorte, têm surgido iniciativas dentro do Congresso em que o protagonismo é a tônica principal. Tais iniciativas serão desafiadas pela capacidade de produção técnica, que remete a um desafio administrativo. O Congresso hoje já possui boas estruturas de assessoramento técnico nas consultorias legislativa e de orçamento, nas assessorias de partidos, gabinetes e comissões, mas precisará avançar mais. Há também um desafio de comunicação com a sociedade, pois resultados práticos cairão na conta dos parlamentares, para o bem e para o mal, com impactos na qualidade da representação. Por fim, e mais importante, há também um especial e central desafio político de articulação. Ele porá à prova os arranjos partidários existentes e as instâncias de coordenação como Colégio de Líderes e comissões temáticas, além do concerto Câmara dos Deputados-Senado Federal. Sem a presença e a batuta do presidente da República para conformar maiorias dentro do Legislativo e conduzir pautas, os arranjos deverão basear-se em novas práticas e novas regras. Como fazer isso ainda é incerto, mas os presidentes das Casas parecem ter ganho ainda mais relevância.
De fato, o movimento atual já vem na esteira de decisões sobre Orçamento Impositivo e limitação ao poder de edição de medidas provisórias pelo presidente da República. Contudo, hoje atinge-se novo patamar, pois as iniciativas não se restringem a apenas limitar o presidente – algo da essência do presidencialismo de freios e contrapesos –, mas sim pretendem substituí-lo em boa medida.
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Algumas possibilidades positivas seriam comissões que realmente definam políticas públicas, orçamento impositivo, cobrança de parlamentares por resultados palpáveis, melhoria da relação eleitor-eleito, mais capacidade e responsabilidade do parlamento. O novo modelo pode implicar, no espectro negativo, não obstante, em mais disfunção, falta de articulação e de respostas à sociedade; em suma, menos legitimidade e mais desgoverno. Ainda é cedo para saber que rumos tais iniciativas tomarão, mas se a política é impulsionada pelos constrangimentos do mundo real, desde há muito que o Legislativo brasileiro não se vê no contexto de desafios e oportunidades em que agora se posiciona. Talvez com outro tipo de liderança voltemos à situação anterior, talvez um novo quadro se consolide. Martelando um clichê adequado à situação, crise e oportunidade são faces da mesma moeda.
A sociedade brasileira está experimentando novidades num contexto de desgaste da democracia e da política. As bases da coesão social sofrem sem ter expectativa próxima de melhora. Alguns movimentos como o “ecossistema” da educação mobilizam-se e tentam defender conquistas civilizatórias, e assim podem frutificar, esperamos, também no futuro. Já o Congresso sobe um degrau em termos de enfrentamento da realidade política; a perdurar o padrão de relações Executivo-Legislativo de hoje ele terá de inventar para si um novo local dentro do governo e do poder nacional.
No mundo social há ações intencionais e resultados não deliberados, consequências de primeira, segunda, terceira ordens; há movimentos ostensivos e outros que passam despercebidos. Em geral, coisas importantes escondem-se para além do noticiário acelerado do dia a dia, arredias a simplificações, generalizações e preconceitos. Afortunadamente temos conhecimento acumulado pelas Ciências Sociais e Humanas para atentarmos a questões estruturais e buscar compreender o que virá com razoável confiança.
[1] DALTON, Russel; WELZEL, Christian. 2014. “Political Culture and Value Change.” in DALTON, Russel, WELZEL, Christian. The Civic Culture Transformed: from allegiant to assertive citizens. Cambridge University Press.
* Professor do Mestrado Profissional em Poder Legislativo da Câmara dos Deputados. Economista e doutor em Ciência Política.
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Texto fraquíssimo escrito por um sectário antigoverno.
Governo bolsonaro? Governo???
Desculpem-me pela sinceridade, mas o artigo é um texto cheio de platitudes, obviedades e frases feitas. Nada de novo. Para além, demonstra ingenuidade acerca das características concretas do Congresso Nacional ao tecer esperanças de que um Legislativo “empoderado” pode ser um ator positivo na gestão de políticas públicas. Antes disso, precisaríamos de uma ampla reforma administrativa, do modelo de avaliação de políticas públicas e do próprio sistema político brasileiro (notadamente dos seus sistemas de governo e partidário-eleitoral).
No entanto, texto acerta ao criticar excessivo entusiasmo de certos atores políticos acerca de uma “solução” parlamentarista para o país. O atual Congresso e nenhuma de suas atuais lideranças possui predicados, sensibilidade de governo, disposição ou habilidades para gerir um sistema parlamentarista em um país tão pobre de estadistas como o Brasil.
Bolsonaro, para desespero dos Militantes Marmita de Preso, tem o poder.
Ele é limitado por um congresso de Nádegas Flácidas , um STF aparelhado e por uma máquina corruPTa ainda funcionando? É.
Mas para ele acionar o art.142 da Constituição Federal, é só querer.
E eu GOSTARIA MUITO que ele fizesse isso!!!!