por César Fonseca*
No calor do tema sobre se deve ou não debater o golpe de 1964, declaração do presidente do Superior Tribunal Militar (STM), ministro Francisco Joseli Parente Camelo, à TV Bandeirantes, de que a esquerda brasileira não é comunista, levanta a possibilidade de discussão em favor do fortalecimento da democracia.
A partir desse entendimento da alta cúpula jurídico-militar, abre-se ou não espaço para negociar pacto político cívico-militar quanto à conclusão do ministro de que a esquerda quer, na verdade, o bem do Brasil, a justiça social e não o confronto ideológico?
Se a esquerda é a encarnação do desejo nacional por uma sociedade justa e equitativa para promover desenvolvimento com distribuição da renda nacional, a reflexão do ministro do STM, ao contrário das acusações da direita e ultradireita bolsonarista, visa o entendimento e não o desentendimento entre esquerda e militares, que racham, histórica e institucionalmente, o país há quase 90 anos, desde a Intentona Comunista de 1935, na era Vargas.
Estaria ou não aberta oportunidade de criação de um Partido da Justiça Social (PJS), no Brasil, como instrumento da esquerda nacional, para negociar um pacto político cívico-militar, capaz de produzir reformas necessárias à consolidação da democracia brasileira?
Que a esquerda brasileira não é comunista, que talvez nunca tenha sido, demonstram inúmeros testemunhos.
PublicidadeO substrato epistemológico que sustenta tal conclusão do ministro é o de que, essencialmente, a esquerda deseja que haja, tão somente, justiça social para que a sociedade brasileira seja feliz e próspera.
Desse modo, a sugestão do presidente do STM parece ser favorável à representação da esquerda como um bloco político unido em um Partido da Justiça Social (PJS), materializando assim sua essência democrática.
Seria ou não uma conjugação de forças progressistas que defendem, historicamente, programa econômico promotor de distribuição de renda, da reforma agrária, da reforma administrativa, da reforma financeira etc.? Levando, quem sabe, ao capitalismo produtivo de viés social, como deseja o presidente Lula.
Os militares, se o ministro Joseli estiver falando por eles, representariam o oposto do que está em vigor no Brasil: o neoliberalismo, modelo fiscal e monetário ortodoxo, que aprofunda a miséria e a divisão social, capaz de produzir perigo constante de guerra civil no país, ou seja, o perigo do próprio comunismo.
Pintaria parceria política cívico-militar para romper com o neoliberalismo, condenado pelo sociólogo Emir Sader como maior obstáculo ao desenvolvimento nacional?
Nesse sentido, o pensamento político-militar do ministro Joseli conjuga com o de Lula, que busca construir o Brasil com tais pressupostos políticos, econômicos e sociais.
Trata-se da tarefa essencial de vencer o subdesenvolvimento e o subconsumismo, que não deixam o país prosperar, mediante justiça social para todos, no plano democrático e sem radicalismos ideológicos.
Ideologia ultrapassada
O titular do STM deixa claro que o comunismo é algo já ultrapassado e não está, nunca esteve, nas cogitações do presidente Lula, cuja base ideológica é o sindicalismo, instrumento que se desenvolve sob o capitalismo, implicando não em supressão, mas em preservação da propriedade privada.
Lula, portanto, no entender do ministro do STF, não tem nada a ver com as acusações que o ex-presidente Jair Bolsonaro faz contra ele, de ser comunista, contra a propriedade privada, a religião e a família.
O próprio Partido Comunista Brasileiro, o histórico Partidão, cruelmente perseguido pelos militares no pós-golpe de 1964, houve por bem renunciar ao comunismo, para buscar conciliação com as Forças Armadas, como explica didaticamente o jornalista e escritor Eumano Silva no livro Longa jornada até a democracia — os 100 anos do Partidão (1922/2022)
No famoso 6º Congresso de 1967, o PCB deu uma guinada para o centro político, buscando conciliar-se com as tropas, tentando reverter o quadro político adverso à esquerda e acelerar a volta à estabilidade democrática perdida no violento golpe desferido em 1964 pela caserna, com o apoio dos Estados Unidos.
Reação tardia
O PCB entendeu, tardiamente, que a via ultra-radical da esquerda revolucionária aprofundaria a divisão-polarização-radicalização nacional.
Não possuíam os esquerdistas em seu conjunto a correlação de forças para levar adiante a proposição capitalista do presidente Jango, derrubado em 1964, de promover as reformas de base, anunciadas em 13 de março de 1964 no mais importante discurso político da história do Brasil.
O PCB fez revisão de sua participação naquele momento histórico, reconhecendo que a radicalização da esquerda – no auge da guerra fria EUA/União Soviética –, que influenciou o discurso de 13 de março, produziu o seu contra-polo: a radicalização da direita fascista, apoiada por Washington.
Na prática, o Partido Comunista, no seu 6º Congresso, fez, também, revisão do seu erro de ter empunhado armas contra Getúlio Vargas na Intentona Comunista de 1935, liderada por Luiz Carlos Prestes, orientado por Stalin/Moscou. Foi um tiro no pé, por brigar contra governo nacionalista.
Trotsky, perseguido por Stalin, orientador de Prestes, criticou — no México, como exilado acolhido pelo nacionalista Cárdenas — o PCB por não entender que o inimigo do comunismo não era Getúlio, mas o imperialismo inglês.
Vargas, logo depois da revolução de 1930, havia feito reforma monetária e fiscal, seguida de moratória da dívida pública, e constatou a exploração financeira inglesa sobre a economia brasileira, ao longo de todo século 19.
Tal exploração se apresentou mais intensamente na República Velha, cujas consequências foram o nascimento do próprio Partido Comunista, em 1922, e a Revolução de 1930, liderada por Getúlio e pelos tenentes.
Saneadas as finanças nacionais, o varguismo promoveu crescimento econômico social sustentável que fez o Produto Interno Bruto (PIB) avançar em média 7% ao ano até 1945.
O imperialismo norte-americano, que no pós-guerra derrubou o imperialismo inglês, viu no getulismo uma ameaça, mas o trabalhista anticomunista Getúlio foi hábil para negociar com o presidente Roosevelt a industrialização brasileira em troca da permissão para as tropas militares americanas se movimentarem no território nacional. Aliou-se, portanto, não à Alemanha nazista, mas aos Estados Unidos democrata.
O PCB jogou contra o trabalhismo
O fato é que os erros históricos do PCB pesaram contra a esquerda no pós-1964, mesmo com os comunistas fazendo revisão histórica dos seus equívocos, o que não os livrou, durante a ditadura 1964/1984, de cruel perseguição.
Em outra circunstância histórica, o trabalhista histórico João Goulart (Jango), aliado de Getúlio, acabaria sofrendo, em 1964, as consequências políticas de sua aproximação demasiada com o PCB.
O PCB incendiou o antiamericanismo quando Washington radicalizava contra a União Soviética, que havia apoiado a revolução cubana e o líder Fidel Castro, cuja influência em toda a América Latina era naquele momento irresistível.
As reformas janguistas — agrária, educacional, tributária, administrativa e urbana — foram tachadas de comunistas, quando na verdade eram capitalistas.
Todo capitalismo desenvolvido realizou reforma agrária como pressuposto estratégico para crescer, formando um mercado interno capaz de consumir as mercadorias produzidas conforme o modelo econômico burguês.
Jango, nacionalista e consciente da sua origem latifundiária, era politicamente avançado, na linha de Getúlio e Brizola, e jamais encampou o comunismo do PCB, mas sim o nacionalismo trabalhista e desenvolvimentista de Vargas.
Em vez de destruir a propriedade privada, reajustou em 100% o valor do salário mínimo, para os trabalhadores possuírem suficiente poder de compra para consumir mercadorias capitalistas, enriquecendo os empresários.
As reformas de base de Jango eram complemento necessário ao desenvolvimento nacionalista getulista, que foi seguido depois pelo capitalismo juscelinista, empenhado em fazer no Brasil o que na China Deng Siao Ping faria posteriormente, atraindo empresas estrangeiras para tocar desenvolvimento nacional.
Divisão dos militares pós-64
Mesmo os militares, que se dividiam entre nacionalistas e americanistas, seguiram a linha de Getúlio, como fez Geisel (presidente brasileiro de 1974 a 1979), alavancando, durante a ditadura, empresas estatais para alcançar o desenvolvimento econômico soberanamente sustentável.
Geisel não tinha nada de esquerda, mas indispôs-se com os americanos porque ousou fechar um acordo militar e nuclear com os alemães, contrariando frontalmente Washington.
A história, portanto, demonstra que a herança de Getúlio calou fundo nos militares nacionalistas geiselistas que confrontaram Washington.
O que agora conclui o presidente do STM, ministro Joseli, na entrevista à Band, é o óbvio ululante: a esquerda brasileira não é comunista.
Conciliação lulista com os militares
Talvez as palavras do presidente do STM expliquem por que o presidente Lula, nesse momento, busca conciliação com os militares, enquanto racha a esquerda, na véspera de mais um aniversário do golpe de 1964, deixando irritadas famílias que perderam seus entes queridos nas profundezas da crueldade militar fascista.
Lula, com seu gesto, corre do confronto com os fardados. Ele ainda sofre as duras consequências da tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, comandada pelo ex-presidente fascista Jair Bolsonaro e apoiada por parte das Forças Armadas, sempre insistindo no fracassado mote comunista para detonar a esquerda.
A síntese do presidente do STM de que a esquerda brasileira não é comunista abre, portanto, uma janela de oportunidade para debate.
A esquerda e os militares, frente à fala do ministro Joseli, têm ou não campo aberto para conciliação, não explicitamente defendida por Lula, mas por ele induzida?
A cabeça política lulista, renunciando a uma polêmica sobre 1964 liderada pelo governo, tenta detonar o status quo político que produziu o fascismo bolsonarista.
O titular do Planalto contorna, politicamente, a polarização política que racha o país ao meio, em meio ao neoliberalismo que não deixa o país crescer. O fantasma do comunismo, alimentado pelos fanáticos, não existe, a não ser na cabeça de doido, como o ex-presidente Messias Bolsonaro.
Chegou ou não a hora da esquerda fugir da sua divisão política intrínseca para uma composição extrínseca, em torno do sonho que ela alimenta, conforme racionalização do ministro Joseli, do STF, de construir a justiça social no Brasil?
Um Partido da Justiça Social(PJS) seria ou não decisivo para alcançar esse objetivo?
* César Fonseca é jornalista de economia, política e geopolítica.
Veja também:
- Prerrogativas critica governo por cancelar ato crítico a golpe de 1964
- O discurso anticomunista ao longo da história brasileira
- O que é, afinal, o comunismo?
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