Ricardo Westin, Agência Senado
Um dos rituais políticos mais antigos do Brasil republicano se repetirá nesta segunda-feira (4). O presidente Jair Bolsonaro enviará ao Congresso Nacional um documento longo e minucioso descrevendo o estado financeiro, econômico, político e social do país e apresentando as políticas públicas que o governo priorizará ao longo deste ano. O calhamaço se chama Mensagem Presidencial.
A tradição anual de remeter a Mensagem Presidencial ao Congresso foi iniciada em 1890, pelo marechal Deodoro da Fonseca, o primeiro presidente.
O Arquivo do Senado, em Brasília, guarda um exemplar de todas as Mensagens Presidenciais. Juntas, elas formam um compêndio de história que abarca os 130 anos da República — sendo cada capítulo narrado pelo presidente da época.
Juscelino Kubitschek, por exemplo, usou a Mensagem Presidencial de 1956 para não deixar dúvidas de que, para ele, a política pública mais importante era a industrialização. JK disse aos senadores e deputados que era preciso criar incentivos fiscais para a indústria automobilística instalar-se no país e os brasileiros deixarem de depender de carros e caminhões importados.
“Essa urgência se torna ainda mais premente à medida que venha a ser executado o programa de governo de ampliação da rede rodoviária nacional e melhorada sua pavimentação”, escreveu JK.
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No início de 1964, o Brasil era agitado pelos planos de João Goulart de fazer mudanças estruturais no país, as reformas de base. Elas foram descritas em detalhes na Mensagem Presidencial desse ano. Num dos pontos mais delicados do documento, Jango pediu ao Congresso poder para desapropriar terras e destiná-las à reforma agrária.
Ele argumentou: “O Brasil dos nossos dias não mais admite que se prolongue o doloroso processo de espoliação que, durante mais de quatro séculos, reduziu e condenou milhões de brasileiros a condições sub-humanas de existência”.
A reação veio a galope. Em 31 de março, duas semanas após a Mensagem Presidencial ser lida no Congresso, Jango foi derrubado por um golpe de Estado que deu início a 21 anos de ditadura militar.
Uma década mais tarde, o general Ernesto Geisel avisou que finalmente começaria a abrir o regime ditatorial. Mas sem pressa.
“Envidamos sinceros esforços para o gradual, mas seguro, aperfeiçoamento democrático, ampliando o diálogo e estimulando maior participação das elites responsáveis e do povo em geral”, escreveu Geisel em 1975.
Na Mensagem Presidencial de 1987, superado o período autoritário, José Sarney deu aos senadores e deputados as linhas gerais da Constituição que eles redigiriam à luz da democracia:
“O trabalho de elaboração constitucional há de resgatar para a sociedade brasileira os valores permanentes das modernas democracias: uma ordem política estável e participativa, uma ordem social calcada nos princípios da solidariedade e uma ordem econômica mais justa e sem discriminações”.
No passado, os parlamentares se reuniam no Senado para ouvir a leitura da Mensagem Presidencial. Hoje, ela é lida na Câmara, por um deputado.
As Mensagens Presidenciais cresceram em extensão à medida que o governo federal adquiriu novas responsabilidades e a máquina estatal ficou mais complexa. O texto inaugural de Deodoro da Fonseca teve 17 páginas. O que Michel Temer redigiu no ano passado, 360 páginas.
O que se lê em público no Congresso não é o documento todo, mas apenas a introdução.
Na Mensagem Presidencial de 1892, Floriano Peixoto mencionou um projeto que só se tornaria realidade sete décadas mais tarde: “Reputando a necessidade inadiável a mudança da capital da União, o governo trata de fazer seguir para o Planalto Central a comissão que deve proceder à demarcação da área e fazer sobre a zona os indispensáveis estudos”.
Em 1930, Washington Luís se vangloriou dos avanços da nação: “O Brasil progrediu enormemente. Desbastaram-se as suas matas, substituídas por habitadas e ricas culturas”.
A cerimônia de entrega e leitura pública da Mensagem Presidencial ocorre em fevereiro e marca a abertura do ano legislativo, isto é, a retomada dos trabalhos dos senadores e deputados após o recesso do fim de ano.
Esse momento não foi escolhido ao acaso. A ideia é que os parlamentares se concentrem desde o início do ano nos projetos de lei ligados à agenda do governo.
Nem todas as prioridades presidenciais, contudo, entram nos livros de história. Na abertura do ano legislativo de 1925, Arthur Bernardes defendeu o banimento das armas de fogo do país:
“Multiplicam-se por toda parte os atentados contra as pessoas. O porte de armas já é proibido pela lei penal, mas nada lhes veda a importação, o fabrico e a venda. Peço-vos a votação de uma lei que seja a interdição pura e simples desses instrumentos de homicídio”.
Na Mensagem Presidencial de 1930, Washington Luís pediu a ampliação do tempo de governo. Para ele, quatro anos não davam para nada:
“O cortejo da campanha presidencial começou em 1928 e se refletiu sobre a tranquilidade do país. Quase dois anos da minha administração ficaram virtualmente suprimidos. O período presidencial, por isso, não deveria ser menor do que seis anos”.
Washington Luís não podia imaginar que, poucos meses mais tarde, seria deposto por um golpe e que o seu sucessor, Getúlio Vargas, ocuparia o Palácio do Catete por nada menos do que 15 anos.
A praxe é que o portador da Mensagem Presidencial seja o ministro da Casa Civil, e não o próprio presidente. Houve exceções. Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003, e Dilma Rousseff, em 2011 e 2015, atravessaram a Praça dos Três Poderes para entregar pessoalmente os papéis ao Congresso.
Neste momento, o Senado e a Câmara estudam algumas propostas que obrigariam o chefe de Estado a sempre comparecer ao Legislativo para ler as Mensagens Presidenciais. Nos Estados Unidos, esse é o costume. O presidente americano profere no Capitólio, no início do ano, o discurso conhecido como Estado da União.
Já foi assim no Brasil. As Mensagens Presidenciais são, na realidade, a adaptação republicana de um rito oriundo do Império, as Falas do Trono. Em cerimônias concorridas, Dom Pedro I e Dom Pedro II iam ao Parlamento e liam diante dos senadores e deputados o discurso sobre o estado e as prioridades do país.
A Mensagem Presidencial também teve a missão de apresentar a versão oficial dos golpes de Estado. Foi o que Deodoro fez em 1890, chamando a Proclamação da República de “revolução heroica e patriótica” e carregando nas tintas contra Dom Pedro II:
“Como força impulsora de toda a máquina política do Brasil, havia a vontade irresponsável do ex-imperador, que, tendo diante de si anulados todos os órgãos de governo consagrados pela Constituição, devia sentir muitas vezes o tédio que a onipotência sem contrastes acarreta. A autoridade fazia rumo para o absolutismo e a tirania”.
Na Mensagem Presidencial de 1933, Getúlio Vargas atacou a República Velha, marcada pela alternância entre Minas Gerais e São Paulo no poder e derrubada pela Revolução de 1930:
“Fechado num círculo de interesses restritos que se confundiam com os da pequena minoria instalada nas posições governamentais, o poder público tornou-se aos poucos alheio e impermeável às exigências sociais e econômicas da nação”.
Em 1965, o marechal Castello Branco escreveu que a “revolução democrática de 31 de março” destituiu Jango para colocar o Brasil de novo nos trilhos:
“Um dos primaciais objetivos da Revolução foi repor o país na sua normalidade constitucional e legal. Normalidade da qual o governo anterior, movido por ideias ou ambições subversivas, se afastara perigosamente, implantando no Brasil o ambiente da agitação e da desorganização administrativa e política que influiu decisivamente para o repúdio nacional que o cercou nos seus dias finais”.
Desde 1890, a tradição da Mensagem Presidencial só falhou em 11 anos, nas décadas de 1930 e 1940, nos períodos em que Getúlio Vargas governou sem permitir o funcionamento do Congresso Nacional.
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