Em seu clássico distópico “1984”, George Orwell cria um mundo no qual um governo ditatorial tem ministérios que, na verdade, fazem o oposto do que os seus nomes e a propaganda apregoa. O Ministério da Paz promove a guerra. O Ministério da Verdade cria e propaga mentiras. Orwell criou a sua distopia mirando uma ditadura de esquerda da sua época, a de Joseph Stálin na então União Soviética que, de fato, manipulava a verdade ao seu bel-prazer. São conhecidas, por exemplos, as fotos em que León Trotski é cuidadosamente removido da cena depois que vira inimigo do regime (inimigo a ponto de acabar sendo assassinado no seu exílio no México). Mas, nestes tempos atuais de fake news, quem hoje domina bem essas ferramentas não são exatamente governos de esquerda. Quem construiu hoje o “Ministério da Verdade” foi a extrema-direita.
E, nesse sentido, é no mínimo curioso o que se vai desvendando quanto à distância que há entre o discurso da era Bolsonaro e o que se descobre na prática. O ex-presidente Jair Bolsonaro elegeu-se em 2018 como reação à indignação produzida na sociedade pelos casos de corrupção nos governos do PT, de Lula e Dilma Rousseff. Lula era o “ladrão” condenado e preso. Sem entrar nas considerações a respeito da condenação e da prisão de Lula – que foram revertidas concedendo-lhe outra vez os direitos de disputar eleições – vão surgindo cada vez mais evidências de que Bolsonaro não era exatamente o perfil que apregoava para dar fim a isso.
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Nas críticas a Lula e ao PT, uma das teclas sempre batidas era a insinuação de que manifestações populares de grupos da sociedade organizada, como o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) eram financiadas pelo partido e pelo governo. Eram, como se tornou comum dizer, os “mortadelas”, porque receberiam lanches e outros auxílios para protestar.
A divulgação dos dados sobre o uso do cartão corporativo por Bolsonaro mostra que, na verdade – ou pelo menos, também –, a mortadela quem financiou foi ele. Em Roraima, estado que hoje vive hoje a tragédia dos índios yanomami, o cartão corporativo de Bolsonaro gastou R$ 109 mil no restaurante Sabor de Casa, que vende marmitas que custam R$ 17. O prato mais caro é um frango assado com baião de dois que custa R$ 50. Bolsonaro esteve em Boa Vista em 26 de outubro de 2021. A dona do restaurante diz que o gasto foi na compra de um kit de alimentos para a equipe de segurança.
Se tomarmos por base o tal frango assado com baião de dois, serão 2.180 pratos. Se tomarmos por base o preço da marmita, 6.411. Isso certamente não foi para alimentar somente a segurança de Bolsonaro. Há outros gastos semelhantes, em padarias e lanchonetes. Não parece imprudente imaginar que Bolsonaro alimentou e financiou as motociatas. Não eram, assim, movimentos espontâneos de apoio a ele. E não eram atos de governo. Eram atos de campanha política. Assim financiados com dinheiro público. Temos, então, aí, a invenção do “cartão-mortadela”.
Um dia depois do casamento de seu filho, o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), o cartão corporativo do ex-presidente gastou R$ 55,5 mil em uma padaria do Rio de Janeiro. Eduardo Bolsonaro casou-se com Heloisa Wolf no dia 25 de maio de 2019. O casamento teve 150 convidados.
PublicidadeEm ocasiões em que esteve em Brasília, outro filho do ex-presidente, o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos) teve suas diárias de hotel pagas também com o cartão corporativo do presidente. Onze diárias, no valor de R$ 2,3 mil, foram pagas para que Carlos trabalhasse em Brasília em home-office durante a pandemia. Carlos, reforce-se, é vereador. Não era funcionário do governo.
A ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro fez uma viagem de lazer a Alagoas. O cartão corporativo pagou as diárias da sua equipe de segurança: R$ 16,2 mil. Michelle não estava a trabalho. Não era um ato de governo.
Michelle ainda usaria o cartão corporativo de uma ajudante de ordens para aumentar ainda mais suas despesas com dinheiro público. Segundo Bolsonaro, ela usava o cartão da funcionária “por não ter limite de crédito disponível” para suas despesas.
Desde antes de ser presidente, tanto Bolsonaro quanto seus filhos respondem a investigações sobre o uso de caixa dois nas contas dos seus gabinetes. As populares “rachadinhas”, esquema pelo qual funcionários devolvem aos políticos parte dos salários que recebem. O senador Flávio Bolsonaro é investigado por isso. E também o vereador Carlos Bolsonaro.
A utilização do cartão corporativo para o pagamento de despesas pessoais, que não são da atividade de governo, pelo ex-presidente, sua mulher e seus filhos parece levar a prática para dentro dessa ferramenta de pagamento de despesas. Bolsonaro teria, então, criado, o “cartão-rachadinha”.
Em benefício de Bolsonaro, deve-se dizer que não é de hoje a desconfiança com o uso de cartões corporativos por presidentes e seus governos. Mas o que vai aparecendo mostra um descaramento nunca visto. Revelando uma distância imensa entre o discurso moralizador e a prática real. É o Ministério da Verdade das redes sociais…
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