O destino das joias avaliadas em R$ 16,5 milhões que o governo saudita deu à ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro reacende o debate sobre os limites nem sempre respeitados entre as esferas pública e privada no Brasil. De acordo com a Lei 8.394/1991 e o Decreto 4.344/2002, que regulamentam a questão, itens recebidos em cerimônias de trocas de presentes, audiências com autoridades estrangeiras, visitas ou viagens oficiais são declarados como de interesse público e devem integrar o patrimônio cultural brasileiro. Ou seja, não são bens particulares, mas de propriedade da União.
As regras sobre o assunto tornam mais nebulosa a tentativa do ex-presidente Jair Bolsonaro de liberar na Receita Federal aquilo que seria um presente do governo da Arábia Saudita para sua esposa. A legislação brasileira obriga pessoas que ingressam no país com bens acima de US$ 1.000 que prestem declaração à Receita Federal. Nesse caso, é cobrado imposto correspondente à metade do valor do bem.
As dúvidas e as coincidências no mistério das joias de Michelle Bolsonaro
Milhões na mochila, nada a declarar
Responsável pelo transporte do mimo milionário, o então ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, não informou que trazia as joias. Se tivesse declarado, o presente encontrado na mochila de seu assessor seria considerado patrimônio da União. Não estaria sujeito à cobrança e imposto. Caso a joia fosse destinada ao seu acervo particular, Michelle Bolsonaro poderia utilizar e fazer dele o uso que bem entendesse, inclusive vendê-lo. Para que isso ocorresse, no entanto, teria de ser pago o correspondente a 50% do valor do bem, mais multa de 25% (caso o pagamento fosse feito em até 30 dias) ou de 50% (se ultrapassar esse prazo), pela não declaração da joia à Receita Federal.
Acórdão publicado pelo Tribunal de Contas da União em 2016 proibiu expressamente que ex-presidentes ou entidades que armazenam itens do acervo presidencial vendam ou doem os presentes recebidos. Documentos bibliográficos e museológicos também se enquadram como patrimônio público. Não são incorporados ao acervo bens consumíveis, assim como doces, frutas e bebidas.
Pelas regras atuais, os presentes recebidos pelo chefe de Estado e sua esposa são catalogados pela Diretoria de Documentação Histórica da Presidência da República, que cuida do acervo durante a vigência do mandato presidencial. Ao fim da gestão, cabe à Presidência providenciar a mudança do ex-presidente e o envio do acervo. Nesse caso, o ex-mandatário passa a ser o responsável pelo acervo e a ter a obrigação de preservá-lo. Para isso, ele tem o suporte do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) para isso.
Hipótese inexistente
Há ainda presentes recebidos pelo presidente que são levados por ele quando termina o seu mandato. Trata-se, nesse caso, de itens de natureza personalíssima ou de consumo direto, como roupas, alimentos ou perfumes. Presentes oferecidos por cidadãos, empresas e entidades costumam permanecer com o ex-presidente.
Segundo o Estadão, ofício enviado à Receita pelo então chefe de gabinete adjunto de Documentação Histórica do gabinete pessoal do presidente da República, Marcelo da Silva Vieira, cobrava a liberação das joias com o objetivo de avaliar se elas deveriam ser incorporadas “ao acervo privado do Presidente da República ou ao acervo público da Presidência da República”. Essa segunda opção, porém, não existe, conforme a decisão de 2016 do TCU. De acordo com o jornal, foram oito tentativas de Bolsonaro de reaver as joias.
Em nota de esclarecimento divulgado na noite desse sábado (4), a Receita Federal negou que o governo anterior tenha tomado os procedimentos necessários para a incorporação do presente ao acervo da União, embora tenha sido orientado pelo próprio órgão quanto a isso.
“A incorporação ao patrimônio da União exige pedido de autoridade competente, com justificativa da necessidade e adequação da medida, como por exemplo a destinação de joias de valor cultural e histórico relevante a ser destinadas a museu. Isso não aconteceu neste caso. Não cabe incorporação de bem por interesse pessoal de quem quer que seja, apenas em caso de efetivo interesse público”, diz trecho do comunicado. “A Receita Federal saúda os agentes da aduana que cumpriram seus deveres legais com altivez, cortesia, profissionalismo e impessoalidade, honrando a instituição a que pertencem”, conclui o texto (veja no final desta matéria a íntegra da nota).
Irregularidades anteriores
No período auditado, comprovou-se que os presidentes em exercício receberam 1.073 presentes. Destes, 361 foram registrados como pessoais ou de consumo direto pelo recebedor restando 712 presentes, dos quais apenas 15 foram incorporados ao patrimônio da União, sendo todos os demais absorvidos pelos Presidentes da República, como propriedade pessoal.
Segundo o relator do processo, ministro Walton Alencar Rodrigues, a interpretação da lei que trata da incorporação de bens pela Presidência da República e de sua regulamentação extrapolaram os limites constitucionais. “O decreto não poderia admitir interpretação segundo a qual os presentes recebidos em cerimônias realizadas com finalidades públicas idênticas e retribuídos com a utilização de recursos públicos da União possam ser classificados, ora como públicos, ora como privados, a depender unicamente do nome da cerimônia e da burocracia, definidos de maneira absolutamente casuística pelos integrantes do Palácio do Planalto”, assinalou.
Bolsonaro diz que não pediu nem recebeu o mimo milionário. Michelle diz que está “rindo” da notícia e que não sabia que tinha as joias. Caberá à Polícia Federal e à Procuradoria-Geral da República esclarecerem o episódio com a abertura de investigação.
Veja a íntegra da nota da Receita:
“Acerca das notícias veiculadas inicialmente no jornal O Estado de S. Paulo sobre a apreensão de joias no Aeroporto Internacional de Guarulhos, no dia 26/10/2021, a Receita Federal esclarece o seguinte, preservando dados protegidos por sigilo:
- Todo cidadão brasileiro sujeita-se às mesmas leis e normas aduaneiras, independentemente de ocupar cargo ou função pública.
- Os agentes da Receita Federal atuantes na aduana são servidores de Estado, com prerrogativas e garantias constitucionais que lhes garante isenção e autonomia no exercício de suas atribuições legais.
- Todo viajante que traga ao país bens pertencentes a terceiros deve declará-los na chegada, independentemente de valor.
- No caso de bens pertencentes ao próprio portador, devem ser declarados aqueles em valor acima de US$ 1 mil, limite atualmente vigente.
- Caso não haja declaração de bem, é exigido 50% do valor a título de tributo, acrescido de multa de 50%, reduzida pela metade no caso de pagamento em 30 dias.
- Na hipótese de agente público que deixe de declarar o bem como pertencente ao Estado Brasileiro, é possível a regularização da situação, mediante comprovação da propriedade pública, e regularização da situação aduaneira. Isso não aconteceu no caso em análise, mesmo após orientações e esclarecimentos prestados pela Receita Federal a órgãos do governo.
- Não havendo essa regularização, o bem é tratado como pertencente ao portador e, não havendo pagamento do tributo e multa, é aplicada a pena de perdimento, cabendo recursos cujo prazo, no caso, encerrou-se em julho de 2022.
- Após o perdimento, é possível, em tese, o bem ser levado a leilão, sendo que 40% do recurso arrecadado é destinado à seguridade social e o resto ao tesouro. É possível também, em tese, a doação, incorporação ao patrimônio público ou destruição.
- A incorporação ao patrimônio da União exige pedido de autoridade competente, com justificativa da necessidade e adequação da medida, como por exemplo a destinação de joias de valor cultural e histórico relevante a ser destinadas a museu. Isso não aconteceu neste caso. Não cabe incorporação de bem por interesse pessoal de quem quer que seja, apenas em caso de efetivo interesse público.
- Os fatos foram informados ao Ministério Público Federal, sendo que a Receita Federal colocou-se à disposição para prosseguir nas investigações, sem prejuízo da colaboração com a Polícia Federal, já anunciada pelo Ministro da Justiça.
- Finalmente, a Receita Federal saúda os agentes da aduana que cumpriram seus deveres legais com altivez, cortesia, profissionalismo e impessoalidade, honrando a instituição a que pertencem.”
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