Durante três décadas a grande mídia massacrou os cidadãos brasileiros com más notícias a respeito da política, dos políticos e partidos, dos governantes e do parlamento. Tudo que era positivo nesses ambientes passou ao largo do noticiário que se orientou para o negativo, a corrupção e as transgressões. Ávido por escândalos, o noticiário permaneceu anos focado no sensacional, noticiando dia após dia detalhes diabólicos da política. Prevaleceu a lógica do espetáculo: concentrar-se nos escândalos deixando o politicamente relevante à margem. Se havia algo positivo, uma proposta inovadora qualquer, isso não era notícia. O negativo ocupou décadas sucessivas das páginas e telas. Uma política editorial de terra arrasada: o campo político era composto por indivíduos perversos e corrompidos.
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Por seu lado, políticos e governantes contribuíram decisivamente para a cultura do espetáculo, fornecendo a matéria prima: capricharam nas patifarias e contravenções. Um segmento importante desses senhores fomentou o noticiário negativo. As páginas e telas da política pareciam páginas policiais: só dava inquérito, investigação, prisões. É fato notório que grande parte dos políticos brasileiros utiliza a carreira política para beneficiar-se. Por causa de suas próprias ações e a predominância no noticiário, autoridades e parlamentares passaram a ser sinônimo do mal e demoníaco. Qualquer político, deputado, senador ou autoridade era um potencial suspeito, habitava o reino do maligno. Em busca de visibilidade, membros do judiciário também contribuíram para o espetáculo, transformando em exibição as escutas, buscas e apreensões. O japonês da Federal transformou-se em celebridade, tamanha a exposição pública.
No médio e longo prazos a síndrome do desencanto com a política foi amadurecendo no imaginário popular. Sedimentou-se entre o eleitorado do país um sentimento de repugnância ao político e à política. O noticiário igualou tudo por baixo: aquilo que se referia ao poder estava podre, não prestava, precisava ser destruído. Não foi surpresa crescer a abstenção e os votos em branco ou nulos nas últimas eleições. Restou o vazio do desencanto, da desilusão com o poder, qualquer poder. Da política, só sobrou o deserto: nenhum partido, nenhum político, nenhuma proposta servia, o mundo da política era um mundo impuro.
Como previa Goethe em sua Poesia e Verdade, quando o demoníaco se torna hegemônico, surge do nada um líder magnetizador: o profeta do apocalipse. Alguém que estava por ventura disponível para este papel. Quase sempre um homem sem talento nem brilhantismo, sem um passado heróico nem uma inteligência arguta, mas com algum atrativo magnetizador. Alguém, não importa quem seja, precisa ‘colocar ordem no terreiro’. Quem estivesse por perto com esse tipo de discurso seria ungido. Hitler é o exemplo histórico mais ilustrativo do poder magnetizador do desencanto. A massa desencantada sente-se atraída por algo exótico: suas desesperanças se reorientam, canalizam-se para uma falsa utopia. Ilusoriamente, escolhe pela emoção um representante de seus anseios sem avaliar racionalmente seu gesto.
No Brasil, bem antes da eleição de Jair Bolsonaro, havia no imaginário popular um profundo desencanto com tudo que se relacionava aos tradicionais partidos políticos, aos governantes e ao poder. Nenhum político, nenhum partido, nenhuma proposta prestava: era preciso encontrar algo radicalmente novo. Assim como aconteceu com Hitler na Alemanha na década de 1930, é no espaço da desilusão e da desesperança que cresceu Bolsonaro, um homem obtuso e deputado medíocre. Não importava se era preconceituoso e autoritário: ele representava um rompimento irrefletido com ‘tudo que aí está’. Bolsonaro cresceu no confuso vazio eleitoral pós-impeachment e se elegeu não por seus méritos enquanto candidato, nem por algum projeto social (que, aliás, nunca existiu), mas por representar a negação de ‘tudo que aí está’. A exótica oratória de Bolsonaro e o mau humor coletivo daquele momento tornaram possível que a loucura individual de um candidato se convertesse no expoente da loucura eleitoral da época.
Depois de quase dois anos no governo, Bolsonaro revela-se um produto desse processo: um presidente totalmente despreparado para o cargo, atordoado com o poder, perdido nos corredores dos palácios de Brasília. Não demonstra nenhuma capacidade para gerenciar uma complexa nação, nenhuma vocação para estadista. Não sabe navegar no mar de crises que se instalou, é incapaz até de percebê-la: está à deriva. Não sabe administrar, não tem um projeto de governo embora se disponha a levar adiante seus impulsos privatistas, sua aliança identitária com Donald Trump (nem sempre correspondida), seu desejo de precarizar as relações trabalhistas e reduzir as conquistas das minorias em favor do capital.
Essas determinações não se traduzem em um projeto consistente de governo entretanto, limitam-se a arroubos temperamentais. Ações impulsivas, como instalar a embaixada do Brasil em Jerusalém só não se concretizou porque desencadeou reações árabes à importação de empresas brasileiras. Se tivesse força, ele as executaria a fim de satisfazer seus frêmitos pessoais e agradar a Donald Trump. O que prevalece são os impulsos emotivos do presidente, nunca os interesses de uma nação. Minorias, gays, negros, pobres, feministas, índios, reservas florestais são empecilhos que precisam ser removidos, se possível com eliminação sumária.
Os impulsos do presidente, de seus filhos e asseclas parecem estar se radicalizando intencionalmente. Configuram um desejo cada vez mais manifesto de estabelecer um poder autoritário que não tolera ser contrariado, que não suporta críticas. Se dependesse só de Bolsonaro, uma ditadura pentecostal seria instalada no país. Ele fecharia o congresso e as cortes para governar conforme suas vontades. Ele já manifestou, em inúmeras demonstrações públicas, seus insanos desejos. Em nome de uma ‘limpeza moral’, e em beneficio de um fervoroso fundamentalismo neopentecostal.
Bolsonaro não é um chefe de estado, não age como um estadista, não pensa em termos de nação: é só um tolo oficial-militar de terceira categoria, impulsivo e despreparado. Não consegue se articular com o Senado nem a Câmara, nem mesmo com os partidos que o apoiam para aprovar seus próprios projetos. Não tem paciência para dialogar, não tolera discordâncias, a prática democrática não é o seu forte. Já disse em alto e bom som, para toda a nação ouvir, que é simpático à tortura. É tão irascível e irritadiço que seus arroubos o tornam inimigo de si próprio. A principal oposição a Jair Bolsonaro são as suas próprias tolices e as insanidades de seus filhos e ministros.
Hitler também tinha ódio do mundo, aversão ao ‘diferente’ e ao diálogo. O trágico é imaginar que os prepotentes seguidores de Bolsonaro são potencialmente capazes de seguir as loucuras do líder se, em algum momento, ele vier a ordenar ações violentas. As milícias e grupos organizados de extrema direita já deram mostras do que são capazes: bandos de potencial violência urbana e de extermínio. Das mentiras das fake news à violência de rua é só um pequeno passo. O poder empodera: foi assim no nacional-socialismo de Hitler. Bandos de racistas agiram cruelmente em nome de uma ‘limpeza étnica’, sem nenhum escrúpulo. Como disse o general nazista Heinrich Himmler, um dos principais responsáveis pelo Holocausto, matar será “uma página de gloria em nossa história”. Deus me livre!