Alexandre Mendonça *
As acusações de assédio envolvendo o agora ex-ministro dos Direitos Humanos Silvio Almeida e a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, além de outras eventuais vítimas, já foram amplamente reportadas e debatidas por aqui e em outros canais, geralmente com um foco: Silvio cometeu assédio contra a ministra e outras vítimas?
Primeiramente, convém deixar claro que em nenhum momento coloca-se a palavra das eventuais vítimas em questionamento, e todas elas devem ser acolhidas e se sentir completamente seguras para buscar responsabilização e eventual reparação daqueles que possam ter cometido os atos de assédio. O que se pretende fazer aqui é justamente analisar como esse acolhimento deveria ser muito mais rápido e eficiente.
Como a suspeita de assédio moral e sexual recai sobre um dos maiores nomes do governo em sua área, um homem público em quem milhares de pessoas depositavam esperanças, extraindo daí uma autoridade e uma legitimidade com poucos paralelos no cenário político atual, negro, com afiado discurso contra opressões, a questão caiu como uma bomba no país, e merece ser analisada com muito cuidado.
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Por se tratar de crime grave, no primeiro escalão do governo, contra mulheres que tiveram sua dignidade violada de maneira violenta, dignidade essa que é inclusive o pilar da nossa Constituição, e por ser o suspeito um homem negro, todos os cuidados para não trazer julgamentos apressados e enviesados para o palco devem ser tomados.
Mas gostaria de me concentrar não no eventual crime, nas vítimas e no suspeito. Proponho um passo atrás para observar o que me parece incontroverso: como o ex-ministro reagiu à crise e como o governo poderia ter agido para lidar com ela de maneira menos atabalhoada.
Com o desenrolar dos fatos, o que vimos foi uma pessoa acuada, o ministro, usando de maneira inapropriada e não republicana as estruturas institucionais para defender a si e sua persona política, numa fuga clara ao princípio da impessoalidade que deve reger a administração pública.
Nesse uso, lançou mão de denúncias que pioraram a situação, como a da suposta interferência da ONG Me Too, responsável pelas denúncias, em processos licitatórios. O que em outros momentos receberia a atenção que uma denúncia grave como essa merece foi visto como tentativa apressada e até infantil de defesa.
Houve também os habituais rumores sobre grupos que estariam interessados em sua queda, em disputas associadas a entidades e poderes estrangeiros, essa eterna Geni cultivada por parte da esquerda brasileira. Comprar tal ideia é acreditar que Silvio Almeida, tido como um marxista bem formado e com ampla leitura sobre táticas de luta por poder político, seria ingênuo a ponto de deixar-se enredar por armadilhas desse tipo.
Sintomático que tivéssemos também discussões resvalando em machismo estrutural sobre o papel da primeira-dama em assuntos de governo, em previsível fulanização e no desvio da questão principal para outros suspeitos de ações análogas. Vieram à baila eventuais assédios perpetrados por outros ministros até pelo presidente da Câmara dos Deputados, acusado, com um peso de evidências enorme, de violência — inclusive sexual — contra a ex-mulher.
Além disso, os defensores de Silvio Almeida, intencionalmente ou não, confundiram as arenas da sindicância interna, de caráter administrativo, com a da responsabilização judicial pelos atos, garantindo-se direito à ampla defesa e ao devido processo legal.
Duvido que alguém quisesse uma “caça às bruxas”. É óbvio que o ex-ministro tem direito a defesa ampla, mas fora do governo, justamente para evitar o uso da instituição na resposta a acusações de natureza pessoal e para estancar uma crise que resultou da inabilidade dos atores em lidar com os fatos e as circunstâncias que se apresentaram.
Toda essa confusão poderia ter sido evitada pelo governo já há alguns meses. Pelos relatos, tanto a ministra Anielle quanto outras eventuais vítimas já haviam protocolado denúncias, que seriam de conhecimento inclusive de outros ministros, sem que fossem dadas soluções ou encaminhamento apropriado para os casos.
Isso traz uma implicação importante: o ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa, provavelmente tinha conhecimento da situação, e a sua principal atribuição organizacional no governo é cuidar da interação entre ministérios, o que claramente não foi feito.
Em um mundo ideal, Rui Costa teria implantado uma versão melhorada da “saída Hargreaves”, um episódio que ficou muito conhecido na presidência de Itamar Franco, quando o então presidente afastou seu amigo pessoal, o então ministro da Casa Civil, do cargo por 100 dias, a fim de conduzir sindicância sobre denúncias de malfeitos em seu ministério.
Tivesse reunido, assim que as denúncias chegaram ao seu conhecimento, indícios fortes de ações de assédio, Rui Costa deveria ter feito chegar ao ministro Silvio Almeida que ele seria afastado, dando-lhe oportunidade de se licenciar ou, recusando-se, promovendo seu afastamento.
Rui Costa poderia ter montado uma sindicância transparente, apresentando o processo que ela seguiria, como as vítimas seriam ouvidas, estabelecendo seu compromisso em conduzir as sindicâncias segundo protocolos raciais e de gênero, chamando inclusive entidades da sociedade civil que atuam nessas esferas dos direitos humanos a acompanhar e fazer parte da sindicância. É isso o que se espera de um bom administrador, que gerencie as crises que se apresentam de maneira ordeira e rápida.
Como não foi isso o que foi feito, o que tivemos foi um atabalhoamento de acusações, de ações não republicanas por parte do ministro, que se recusou até a última hora a entregar seu cargo, emparedando um governo que deve de maneira inequívoca a sua vitória nas urnas ao eleitorado feminino, não podendo de maneira alguma deixar de dar uma resposta a esse eleitorado.
E quem ficará sem resposta somos outros: todos aqueles que, de uma forma ou de outra, acreditamos na luta pelo pleno reconhecimento dos direitos humanos no país, em todas as suas dimensões.
Silvio Almeida nos deixou à mercê de ataques de fundo moral, na arena da luta política, tanto da direita quanto da esquerda. O ex-ministro, um intelectual poderoso, talvez não tenha compreendido o papel que desempenhava e o peso das expectativas que carregava. Um papel que muitos dizem impossível, mas que é condizente com quem apresenta uma atuação calcada em propósitos firmes e princípios sólidos.
Grace Davie, professora emérita de Sociologia da Religião da Universidade de Exeter, discutindo a posição parecida de líderes religiosos, diz que um líder de organização religiosa, como um bispo, não pode apresentar dúvidas ou ter comportamentos que não condizem com aquilo que prega, sob pena de deslegitimar sua mensagem e sua liderança.
Guardadas as devidas proporções, e pedindo licença para usar o conceito sem as devidas considerações científicas, conseguimos traçar um paralelo entre o que a professora Davie diz dos líderes religiosos e o que experimentamos com Silvio Almeida.
O que Silvio Almeida fez ou não fez, e as razões por ter ou não feito, são questões que ficam para as autoridades policiais, judiciárias, psicólogos e analistas do comportamento humano.
Para o restante de nós, fica a certeza de que a ação do governo não foi a melhor possível. Colocou em risco as vítimas e a própria legitimidade da agenda de direitos humanos, restando ainda a tristeza da perda de um quadro em que depositávamos tanta esperança, em uma situação tão complexa e ao mesmo tempo tão clara, que nos deixou em choque e da qual levaremos tempo para nos recuperar.
* Alexandre Mendonça é advogado formado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
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