“Sofrível” é das palavras mais mal empregadas e compreendidas da língua portuguesa. É usada no sentido de horrível, desastroso, abjeto, deplorável e semelhantes.
O sentido real é bem outro. Sofrível é o mesmo que suportável, tolerável… Resumindo: aquilo que não é bom, mas que se pode sofrer.
Esse é o Brasil sem Bolsonaro no poder. Um lugar repleto de problemas, é verdade. País de desigualdades infames, desonrosas. De pessoas revirando lixo, dormindo pelas calçadas das grandes cidades a metros de residências ou edifícios de luxo. País de violações diárias sobre as maiorias minorizadas (que o digam as mulheres e as pessoas pretas, para ficar só nesses exemplos em meio a tantos outros). Mas, agora, um país novamente sofrível, suportável, que se tornou um pouco menos pior sem as violências, os ataques, os arroubos diários de Bolsonaro na cadeira e na caneta da Presidência da República (e que ele permaneça cada vez mais longe da cadeira e da caneta, espero).
Foi lendo o romance inaugural de Clarice Lispector, “Perto do Coração Selvagem”, que encontrei a ideia deste texto. Sem medo de anacronismo por me apoiar numa obra dos anos 1940, constatei no trecho a seguir a sensação que me invade desde o dia em que fizemos encerrar a gestão de Bolsonaro:
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“Como se visse alguém beber água e descobrisse que tinha sede, sede profunda e velha. Talvez fosse apenas falta de vida: estava vivendo menos do que podia e imaginava que sua sede pedisse inundações. Talvez apenas alguns goles…”.
Os anos de Bolsonaro nos deixaram assim. Com sede intensa de tudo: de vida, de cultura, de paz, de tolerância. De tudo aquilo que ele nos privou. Ele e seu grupo nos capturaram, e foram nos levando tudo: nossa integridade, nossa identidade, por vezes até mesmo a nossa decência, quando ousou (e tantas vezes conseguiu) nos rebaixar à sua régua.
Aquele governo foi como um furacão, que arranca tudo abruptamente do solo, mistura e revolve tudo no ar, matando-nos real ou simbolicamente, ou entorpecendo nossos sentidos dentro de um nefasto redemoinho de pavor. Lançados violentamente de volta ao solo, perdemos a noção do que tínhamos, e mesmo do que éramos. Foi quando o caos bolsonarista se travestiu de algo natural. E naturalizamos tudo: o ódio, a violência, a descortesia e as agressões diárias (entre nós mesmos, em nossa vida miúda). Um permanente estado de intolerância e confrontação, de rebaixamento civilizatório crescente. Tudo se torna atroz. Naturalmente atroz, o que é pior.
Mas, para nós que chegamos à outra margem dessa pavorosa travessia, há sempre o despertar. Perfeito? Puro? Sublime? Longe disso. Mas respirável, suportável, ou mesmo… sofrível.
Ergamos um brinde ao país sofrível, o estágio possível depois da catástrofe do último período.
E, Clarice, que nunca mais padeçamos de falta de vida, que nunca mais vivamos menos do que podemos.
pelo título achei que era um engano, mas ao ler o texto entendi que nem tudo parece o que é, que alívio!!!