Gustavo Teixeira Ferreira da Silva e Renato Queiroz*
A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 7.835), encaminhada pela Advocacia Geral da União (AGU) ao Supremo Tribunal Federal (STF), se tornou tema controverso e vem sendo tratada como uma tentativa de reestatização da Eletrobras. Não é este, no entanto, o objetivo da iniciativa. A peça inicial da AGU deixa claro que a meta é a recuperação da gestão da União sob a parcela do patrimônio público empregado no grupo. A modelagem da privatização (Lei 14.182/2021) limitou a 10% o poder de voto dos acionistas, e a União, que detém 43% do capital, não consegue participar de sua administração.
Acordos entre acionistas podem ser feitos de forma sorrateira para objetivos diferentes do interesse público. O Estado brasileiro não pode se tornar um mero acionista recebedor de dividendos, subordinado aos interesses de agentes financeiros, acionistas minoritários que hoje comandam as cadeiras do Conselho de Administração. Parcerias entre o público e o privado, como no caso de uma empresa de economia mista, podem contribuir para financiar projetos em setores de infraestrutura que demandam grande volume de recursos e possuem longo tempo de maturação. Todavia, tais parcerias não devem se resumir a partilha dos dividendos que resultam de estratégias de maximização do valor acionário. Pressupõe-se que os projetos de infraestrutura atendam ao interesse público nacional. A execução do serviço público de energia elétrica é essencial para o crescimento econômico, a soberania nacional e políticas de equidade.
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Desta forma, a ADI 7.835 enfatiza a responsabilidade da União sob o investimento público na Eletrobras, cerca de R$ 35 bilhões a valor de mercado. Imagine alguém ter um investimento de R$ 35 bilhões e não poder influenciar em sua administração, inclusive para impedir que esse montante seja utilizado em prejuízo próprio (como é o caso do consumidor final de energia elétrica). A seguir, destacamos três aspectos que reforçam a questão legal apontada pela AGU na ADI 7.835 sobre a necessidade de retomar a participação da União na gestão da Eletrobras.
O primeiro ponto é o elevado poder de mercado da Eletrobras, o maior grupo de energia elétrica da América Latina. O risco de concentração de mercado de uma Eletrobras privada foi alertado inclusive por defensores da privatização, que advogavam pela venda das subsidiárias no lugar da privatização do conglomerado.
O segundo ponto diz respeito à relevância operacional de suas usinas e redes de transmissão para o bom funcionamento do sistema interligado nacional. A Eletrobras controla cerca de metade dos reservatórios hidroelétricos. Nenhum país de base hidroelétrica significativa privatizou todo seu setor elétrico. O Brasil é o ponto fora da curva. Cabe destacar que as usinas hidroelétricas não são responsáveis apenas pela sua parte eletromecânica. Os reservatórios existentes, de certo modo, cumprem funções que ultrapassam sua serventia para o setor energético.
E terceiro, o atual contexto de incerteza resultante das profundas transformações pelas quais o setor elétrico vem passando: crise climática, crescimento da participação de novas fontes renováveis e aumento dos custos dos insumos energéticos. O governo brasileiro pode, por exemplo, influenciar a gestão da Eletrobras para alavancar políticas voltadas para a transição energética com justiça social.
O atual governo se posicionou oficialmente na COP 27 ao colocar o Brasil em um papel de protagonista no processo de enfretamento das mudanças climáticas. A busca em recuperar a participação do Estado na gestão da Eletrobras guarda forte relação com o objetivo brasileiro. Diante da crise climática e da guerra na Ucrânia, vários países estão adotando medidas que aumentam a participação estatal no setor de energia como estratégia de segurança energética. Há casos em que governos estão nacionalizando empresas de energia (França e Rússia), bem como adotando políticas de subsídios nos preços de energia (Alemanha).
A atual conjuntura hídrica favorável no Brasil pode, e provavelmente deverá, se reverter em algum momento. Não é demais lembrar que o país atravessou três graves crises hídricas nas últimas duas décadas. Numa conjuntura adversa, o que esperar dos acionistas privados da Eletrobras, dentre eles os mesmos da Americanas?
A Eletrobras possui longa experiência na elaboração e execução de projetos em energia renovável. A implantação de um programa de reindustrialização nacional em linha com a transição energética pode incluir parcerias estratégicas da Eletrobras com empresas de diferentes setores, sejam elas privadas ou estatais. Nesse particular, investimentos em tecnologia e inovação são imprescindíveis e o governo pode contar com a atuação do seu Centro de Pesquisas de Energia Elétrica (CEPEL).
Entendemos, diante de tudo o que foi exposto, que a recuperação da efetiva participação da União, que detém mais de 40% do capital total da Eletrobras, é positiva e certamente trará importantes contribuições no âmbito do Conselho de Administração do grupo, com vistas a compatibilizar os interesses da sociedade brasileira. Em especial no que diz respeito à segurança e à universalização do acesso da energia elétrica em consonância com a realidade econômica nacional.
* Gustavo Teixeira Ferreira da Silva e Renato Queiroz são diretores do Instituto Ilumina – Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Elétrico
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