É possível que, às vezes, nos momentos em que despacha solitário, o presidente Lula perceba o amplo gabinete que ocupa no terceiro andar do Palácio do Planalto como uma espécie de ilha deserta. O Poder Executivo é solitário. Ao contrário dos outros dois, que são executados por um conjunto de pessoas. Mas, para além da solidão, há uma outra constatação que deve angustiar Lula ainda mais. Hoje, os três poderes da República estão desequilibrados. E esse desequilíbrio tornou o Poder Executivo, esse que é exercido por Lula, o menor dos três poderes.
É claro. Não é nada pouco ser presidente da República. É claro que Lula tem imenso poder de decisão sobre os rumos do país. Mas, se os poderes da República deveriam funcionar como pratos de uma mesma balança, por aqui eles têm funcionado mais como uma sequência de peças de dominó. Os poderes, como cada uma das peças, derrubam a peça posterior. Nesse jogo, o Executivo tem sido sempre a primeira peça derrubada. E o Judiciário cuida sempre de ser a última peça do jogo.
Desde Montesquieu que nós sabemos que os três poderes da República têm de ser “equipotentes”, como gostava de repetir o ex-vice-presidente Marco Maciel. É preciso haver um equilíbrio entre eles. Se um dos três poderes tenta extrapolar as suas atribuições, os outros atuam para travá-lo. É o chamado sistema de freios e contrapesos entre os poderes. Mas isso só funciona bem se há equilíbrio de forças entre os poderes. Se alguns poderes ficam mais fortes do que outros, o sistema de freios e contrapesos acaba desequilibrando o jogo. E faz com que a balança, em vez de nivelada, penda para algum lado.
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Para sorte de Lula, ele anda de bem com o poder que hoje é mais poderoso: o Judiciário. Durante o governo Jair Bolsonaro, diante dos arroubos autoritários que pareciam vir do Palácio do Planalto, o Judiciário exerceu fortemente o seu papel nesse sistema de freios e contrapesos. Mas o Judiciário já vinha empoderado há tempos, pelo processo que se batizou de “judicialização da política”. Há tempos é na Suprema Corte que as principais pendências políticas do país acabam resolvidas.
E há, talvez, um problema nesse empoderamento do Judiciário. Dos três poderes, ele é o único cuja escolha dos integrantes não é feita pelo cidadão. Não é feita por voto. Mas essa é uma outra e longa discussão. O fato é que já há algum tempo o Judiciário viu crescer seu poder sobre as decisões políticas. Mais recentemente, porém, foi a vez do Legislativo experimentar também esse crescimento.
Aos poucos, o Congresso foi ganhando uma autonomia que diminuiu sua dependência na relação com o Executivo. E isso está muito ligado ao seu controle sobre a execução das verbas orçamentárias. Antes da Constituição de 1988, cabia ao Congresso simplesmente aprovar ou rejeitar o orçamento. Sua capacidade de incluir destinações era muito limitada a poucas verbas na área social. A Constituição inventou as emendas orçamentárias, dando ao deputado e ao senador a capacidade de indicar onde incluir dinheiro.
Não demorou muito para que se constatasse o tamanho do rolo ali decidido. Deputados se atiraram com voracidade sobre o controle das verbas milionárias. E foi montado o esquema que se tornou conhecido como dos Anões do Orçamento. Um dos maiores escândalos da história política do país. Escândalo que envolveu até um assassinato: de Ana Elizabeth Lofrano, ex-mulher do principal assessor da Comissão de Orçamento, José Carlos Alves dos Santos.
O escândalo virou CPI. A comissão pediu a cassação de 18 deputados. Seis efetivamente perderam o mandato. Mudanças na forma de deliberação do orçamento foram tomadas para tentar minar o esquema. Infelizmente, porém, o tempo passou. E a sede por poder e dinheiro mostrou que a lição do escândalo não tinha sido aprendida.
Pouco a pouco, o Congresso passou a trabalhar para aumentar de novo o poder sobre a execução das emendas. Fazendo com que parte dessa execução se tornasse impositiva. Ou seja: o governo não tinha mais discricionariedade sobre a liberação. Estava obrigado a fazer. A coisa evoluiu para o chamado orçamento secreto, no qual o dinheiro era liberado sem que sequer publicamente se soubesse para quem. O STF derrubou essa possibilidade. Mas, por acordo político, o governo acabou mantendo a liberação das verbas.
Se antes a sociedade poderia lamentar que o jogo político entre Executivo e Legislativo se desse pela barganha na liberação dessas verbas, pelo menos isso dava ao governo algum poder sobre o Congresso. Hoje, o Congresso depende bem menos do governo nesse jogo. E passou a ter uma capacidade muito maior de pressionar o governo do que o governo de pressionar o Congresso. A balança desequilibrou-se. Os pratos pendem para um lado.
A MP dos Ministérios mostrou o tamanho desse desequilíbrio. É mais do que razoável se imaginar que cada um dos três poderes deva ter autonomia para decidir como irá trabalhar. No caso do Executivo, que e quantos ministérios terá, e o que cada um deles irá fazer. Ainda que a MP ao final tenha sido aprovada, o Executivo não conseguiu exercer essa autonomia na sua plenitude. A Câmara decidiu, por exemplo, que o Ministério dos Povos Indígenas não fará demarcação de terras dos povos originários. E pronto. A discussão agora sobre o Ministério do Turismo mostra que também não é o Executivo quem de fato escolhe seus ministros. Escolhe se o Legislativo quiser. E quem o Legislativo quiser.
Talvez seja duro para o único governante do país a exercer por três vezes o comando do país, que saiu do seu segundo mandato como o presidente mais popular da história, constatar no seu retorno pela terceira vez que seu poder de decisão não é mais o mesmo. Que há uma outra realidade com a qual ele agora terá de conviver. Difícil vislumbrar tão cedo o reequilíbrio da balança dos poderes. A provável angústia de Lula é constatar que exerce, de forma solitária, hoje o menor dos três poderes…
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