A reforma tributária, cujo primeiro projeto de regulamentação foi aprovado na última quarta-feira (10) pela Câmara, ainda que imperfeita, representa um avanço para o Estado brasileiro, avalia o presidente da Associação Nacional das Associações de Fiscais de Tributos Estaduais (Febrafite), Rodrigo Spada. Mas, segundo ele, são necessárias outras ações para garantir justiça na cobrança de impostos, como a reforma sobre a renda e o patrimônio. Para Spada, também é importante que o Congresso aprove medidas para fortalecer a administração tributária e evitar crimes considerados de “colarinho branco”, como a sonegação fiscal.
A Febrafite é uma das apoiadoras do Prêmio Congresso em Foco.
Veja a íntegra da entrevista:
Congresso em Foco – Qual é a importância da reforma tributária para o país?
Rodrigo Spada – A importância é praticamente a refundação do próprio Estado. O Estado é o único ente que consegue invadir a esfera do particular, do patrimônio do particular, que é também direito constitucional, para conseguir tornar possível a vida em sociedade.
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Nós estamos mudando a nossa forma de compartilhar os custos de vida em sociedade. Então, ao nosso ver, é uma discussão estruturante e muito maior. Tanto é que dá para ver que ela movimenta todos os setores da economia, todos os trabalhadores, todos os entes públicos.
A reforma tributária é um avanço gigantesco. Uma pessoa ou outra pode falar que ela não é perfeita e nunca vai ser. É sempre uma peça dinâmica e quando você fala de uma construção democrática com muitas mãos escrevendo, nunca vai ser a peça perfeita na visão de ninguém. Mas, dentro das possibilidades políticas, o que está se construindo é algo muito melhor e muito mais avançado do que a gente tem hoje.
Como funciona o sistema tributário atual?
Nós temos um sistema tributário totalmente anacrônico, que é da década de 1960 numa economia fechada, industrial. E hoje, temos uma economia de serviços, globalizada e o nosso sistema tributário continua naquele modelo do Código Tributário Nacional, que é de 1966.
Ele é disfuncional, porque conspira contra o crescimento econômico e o desenvolvimento da nação, na medida em que ele onera excessivamente os contribuintes, seja por custos de conformidade – ou seja, quanto o contribuinte precisa para pagar o imposto–, ou por quebrar a neutralidade, já que ele favorece mais produtos importados do que os nacionais. Isso sucateia e destrói a indústria nacional, gerando custos elevados de logística por questões de guerra fiscal, por exemplo.
Outro ponto é que o Brasil tem equivalente a 75% do PIB [Produto Interno Bruto] nacional em contencioso, em disputa, em litígios tributários administrativos ou judiciais. Para você ter uma ideia do valor disso, são dois anos de arrecadação.
É muita coisa.
Sim, muita coisa. Se a carga tributária está em 34%, são mais de dois anos de dinheiro que poderia estar na mão do governo para fazer políticas públicas, políticas sociais ou na mão das empresas para fazer a economia girar. Mas está ajuizado, em litígio, com insegurança jurídica.
Então a gente tem um sistema tributário muito ruim, muito complexo e que acentua desigualdades. Essa é uma pauta muito cara da Febrafite. O modelo atual opera contra os princípios básicos da Constituição federal, de reduzir desigualdades, de promover um estado de bem-estar social, na medida que ele onera excessivamente os mais pobres e desonera os mais ricos.
O sistema tributário deveria levar em consideração o princípio da capacidade contributiva, quem tem mais, pode mais, o da progressividade, e no Brasil é ao contrário. Só estamos mexendo na tributação sobre o consumo, não sobre a renda e o patrimônio. Para você ter uma ideia, 50% da arrecadação do Brasil vem do imposto sobre o consumo. Na maioria dos países desenvolvidos é 25%, 20%, 30%, sabedores que são que a tributação sobre o consumo onera proporcionalmente a renda das pessoas mais carentes.
Então a reforma tributária trazer justiça social e crescimento econômico não é pouca coisa. É claro que os efeitos serão estendidos no tempo, porque é uma reforma que vai ter um período de transição longo. Ela termina de ser implementada em 2032 para o contribuinte. Mas ainda assim, só de uma aprovação, ela já traz uma expectativa de futuro muito melhor para o nosso país.
Como você avalia as mudanças que o Congresso tem feito nos projetos de regulamentação da reforma?
Eu acho que tem que respeitar a política. Todo mundo vai ter uma demanda, uma necessidade, uma visão diferente e o Congresso Nacional é a casa legítima para fazer esse debate. Então, no geral, eu só posso elogiar o trabalho do Congresso Nacional por estar levando adiante essa pauta com transparência, com debate. Mais de mil especialistas ouvidos, nunca teve um projeto com tantas audiências públicas.
O governo optou por dividir a reforma tributária em duas: a primeira parte sobre o consumo, mas ainda tem a reforma sobre a renda e o patrimônio. Por que é necessário mexer nessas áreas também?
Onde você olha o sistema tributário tem problemas, tem distorções e as distorções são acomodações históricas, culturais, políticas de imposição dos mais poderosos sobre os desvalidos. Então mesmo a tributação sobre a renda ou o patrimônio a gente tem distorções gigantescas. Por exemplo, a renda do capital é isenta e a renda do trabalho do trabalhador é taxada em até 27,5%, uma distorção gigantesca.
O pessoal vai viajar para os Estados Unidos e fala: “Nossa lá é mais barato”. Eles pagam o sales tax, que é o imposto sobre vendas lá, de 8%. Aqui no Brasil vai ser de 26,5%. É verdade. Mas essas pessoas não veem do outro lado que o imposto de renda lá é 40% e nós pagamos até 27,5%. Então o americano, o europeu, eles pagam muito na renda, porque o imposto sobre a renda consegue diferenciar pelo critério da pessoalidade. O imposto sobre o consumo, não.
Ele não diferencia quem está comprando aquele saco de arroz, se é um milionário ou é um pobre, e cobra tudo igual. A renda, não. Você consegue fazer uma declaração, ver quem tem filho, quem precisa de educação ou saúde e dar um desconto. Quem é milionário, solteiro, tem que pagar mais. E isso é tudo possível fazer no imposto de renda, essa progressividade, que é fundamental para reduzir desigualdades sociais.
Quais são as chances de essas mudanças na tributação da renda e do patrimônio serem aprovadas ainda nesta legislatura?
Vai depender muito da eleição do ano que vem para as presidências da Câmara e do Senado. [Arthur] Lira e [Rodrigo] Pacheco são reformistas, eles se comprometeram com essa pauta. Mas eles se comprometeram com a pauta da tributação sobre o consumo, que é essa que vai fazer o país crescer sim. Agora a pauta que vai reduzir desigualdade, que vai taxar os mais poderosos, que é a do imposto de renda, é uma pauta mais difícil no Congresso que a gente tem.
Acredito que o governo vai tentar. É um governo progressista, eu tenho a mais absoluta confiança na equipe do governo, tanto o ministro [da Fazenda, Fernando] Haddad, quanto a Secretaria Extraordinária de Reforma Tributária, capitaneada pelo Bernard Appy, tem os melhores princípios e valores e estão realmente imbuídos de fazer essa reforma tributária até o fim, inclusive da renda. Não mandaram o projeto para não tumultuar o processo, mas eles vão enviar, tenho certeza disso.
Agora como vai ser recebida pelo Congresso, quem serão os presidentes, quais os compromissos políticos eles terão que fazer para serem eleitos, aí é um outro jogo.
Na sua opinião, no que o Congresso ainda pode avançar para fortalecer a administração tributária e a carreira dos auditores fiscais?
Para nós, a reforma tributária em si já traz um reconhecimento público, porque hoje nós somos os aplicadores da norma tributária. Quando se tem uma norma tributária ruim, disfuncional, perversa, nós temos a nossa imagem pública desgastada, porque nós somos aplicadores da lei. Mas é claro que tem medidas estruturantes que podemos oferecer para fortalecer as administrações tributárias. Uma delas é implementar o que já está no artigo 167 da Constituição Federal.
Lá diz que nós [administração tributária] somos essenciais ao funcionamento do Estado, que devemos ter precedência sobre todas as áreas administrativas e os únicos que podem ter vinculação de recurso do imposto. Pela Constituição, o imposto é não vinculado [ou seja, não precisa ser empregado diretamente na área que gerou a tributação], exceto para a saúde, a educação e a administração tributária. Saúde e educação já têm um piso mínimo de gastos. A administração tributária ainda não tem.
Esse seria um pleito que poderia dar fôlego para a gente modernizar, contratar, fazer uma administração tributária mais autônoma, independente de governos. A administração tributária é política de Estado, não de governos. Então ela deve ter condições estruturantes para operar independente do ânimo do governante de plantão.
Outra coisa é que no Brasil os crimes contra a ordem tributária são muito lenientes, todo mundo vê com muita permissividade. Sonegação é papo entre amigos de boteco até contando vantagem, enquanto que em outros crimes a culpabilidade é muito mais severa. Então eu acho que a gente deveria dar mais enforcement para o Fisco para que ele possa cobrar e quem não paga ser punido na exata medida da lei.
Como?
O Fisco hoje não tem instrumentos, por exemplo, para fazer execução administrativa. Seria excelente. Países do mundo todos têm. O Fisco viu que está devendo? Já foi julgado no processo administrativo? O próprio Fisco vai lá e bloqueia bens para satisfazer a sociedade, o erário público. E aí depois o contribuinte, se quiser, entra com ação judicial, para desbloquear os bens.
No Brasil, o Fisco não pode bloquear bens. E aí quando termina o processo judicial, 10 anos depois, a pessoa já dilapidou o patrimônio, colocou em nome da família, de laranja e não paga, não satisfaz o erário. Então a sociedade toda está perdendo com isso e poucos se enriquecem. Claro que teriam muitas medidas de cobrança, de execução administrativa, de punição mais severa para quem sonega, porque a sonegação e a corrupção, na prática, são a mesma coisa. É tirar dinheiro do cofre público. Só muda o momento que se opera: um é antes de entrar no cofre público e o outro, depois.
São esses pontos que eu acho que o Congresso Nacional deveria se debruçar para fortalecer as administrações tributárias.
Lysiane Chlarson
Camoni Gernegross