- a instituição de um imposto sobre bens e serviços (IBS), não-cumulativo, devido no destino e com legislação única nacional, em substituição aos atuais ICMS (imposto sobre circulação de mercadorias e serviços) e ISS (imposto sobre serviços);
- a criação de um Conselho Federativo para administrar o novo imposto sobre bens e serviços;
- a instituição de uma contribuição social sobre bens e serviços (CBS), em substituição aos atuais PIS (contribuição para o Programa de Integração Social), Cofins (contribuição para o financiamento da Seguridade Social) e IPI (imposto sobre produtos industrializados);
- para alguns setores ou finalidades específicas, a criação de regimes diferenciados em relação às regras gerais (isenções, reduções de alíquota ou aproveitamentos de créditos); e
- a possibilidade de uma parte dos Estados criarem um tributo sobre produtos primários e semielaborados (desde que esses entes estatais tenham certos fundos de investimento em infraestrutura e habitação).
Esse novo desenho institucional-tributário, aprovado numa estranha e suspeita pressa (uma “correria” poucas vezes vista no Parlamento para temática tão complexa), reclama a edição de várias leis complementares e ordinárias no âmbito de um processo de transição com duração de dez anos.
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A referida decisão dos deputados federais foi amplamente comemorada pela grande imprensa, tributaristas, segmentos empresariais e pelo governo do senhor Luiz Inácio Lula da Silva. Sintomaticamente, esses setores destacam alguns aspectos bem específicos das mudanças realizadas na tributação brasileira para qualificá-las como positivas ou promissoras. Afirma-se, com intensidade e de forma repetida, que a Reforma Tributária (da PEC n. 45/2019) aponta para a simplificação, eliminação de distorções, redução de custos empresariais, eficiência econômica e modernização das incidências tributárias
Não existe a menor dúvida de que vivemos em uma das sociedades mais desiguais do mundo. Esse traço fundamental da realidade brasileira define a presença de interesses profundamente distintos na forma de estruturação de uma série de mecanismos socioeconômicos que interferem diretamente na distribuição das riquezas produzidas. A tributação (em última instância, o financiamento das ações estatais) figura entre os principais instrumentos a serem considerados quando se trata da repartição social das riquezas emergentes das atividades econômicas.
Assim, é preciso analisar a Reforma Tributária da PEC n. 45/2019 sob a ótica dos interesses da grande maioria da população brasileira (trabalhadores, estudantes, aposentados, consumidores de bens e serviços, microempresários, pequenos empresários, agricultores familiares). É crucial, ainda, registrar que esses interesses não estão devidamente articulados e não são verbalizados com a mesma frequência e intensidade, notadamente na grande imprensa, em comparação com aqueles decorrentes dos segmentos minoritários e historicamente privilegiados da sociedade brasileira.
Para os segmentos populares da sociedade brasileira, importa, em síntese, uma tributação que: a) diminua substancialmente o ônus fiscal sobre o consumo (de bens e serviços) e a renda oriunda do trabalho; b) seja baseada, em termos arrecadatórios, na intensa tributação da renda decorrente do capital e do patrimônio (notadamente aquele indicativo de riquezas em níveis consideráveis); c) evite a sonegação e os planejamentos tributários e d) reduza radicalmente os incentivos e benefícios fiscais. Em outras palavras, a tributação precisa ser orientada pela capacidade econômico-contributiva e concorrer para a realização da justiça social com a distribuição equitativa da carga tributária.
Percebe-se, sem maiores esforços, que os grandes interesses socioeconômicos verbalizam, na atuação de vários atores sociais, uma fortíssima preocupação com simplificação e eficiência econômica. Sem recusar essas definições, interessa prioritariamente à grande maioria da população um sistema tributário que retire mais de quem pode pagar mais e financie adequadamente um necessário estado de bem-estar social.
PublicidadeEfetivamente, a Reforma Tributária da PEC n. 45/2019 teve alguma preocupação com a justiça do sistema tributário. São pontos elogiáveis: a) a alíquota zero para os produtos da cesta básica nacional de alimentos (a conferir a posterior definição de seus componentes); b) a devolução de parte dos recursos arrecadados sobre bens e serviços para o consumidor final de baixa renda (“cashback”); c) a tributação seletiva sobre produtos nocivos à saúde e ao meio ambiente; d) a proteção ambiental como princípio básico para a criação de incentivos regionais e forma de evitar externalidades negativas; e) a progressividade para o imposto sobre doações e heranças e f) a tributação sobre embarcações e aeronaves (com algumas exceções). Entretanto, parece fora de cogitação que essa motivação não foi a principal. Tudo indica que esse tipo de sensibilidade, assim como muitos outros interesses específicos, foram agregados ao objetivo principal com simplificação e eficiência econômica para viabilizar a aprovação da proposição legislativa.
É possível afirmar, sem medo de errar, que a aprovação da Reforma Tributária da PEC n. 45/2019 é um bom retrato do Brasil atual. Os interesses mais poderosos e articulados formam sua espinha dorsal. Os interesses menos poderosos são contemplados de forma secundária, com extensão e intensidade insatisfatórias. Nesse cenário, a proposição é vendida como benéfica para todos. Quantas e quantas vezes foi utilizada a expressão “jogo de ganha-ganha”. O que não se diz depois do uso dessa última expressão é a dimensão dos ganhos distribuídos pelos principais setores sociais. E não se perca de vista o verdadeiro festival de exceções ao regramento geral do “IVA brasileiro”, atendendo a interesses deste e daquele segmento empresarial, projetando a maior alíquota do mundo para esse tipo de tributo. O tratamento diferenciado e privilegiado para o capital financeiro e o agronegócio exportador foi cuidadosamente consagrado.
É muito sintomático que a reforma da tributação sobre a renda e o patrimônio tenha sido deixada “para depois”. Os debates parlamentares sobre a progressividade do imposto de doações e heranças já projetam o tamanho das dificuldades para os necessários avanços da tributação sobre as manifestações de riquezas oriundas das rendas decorrentes do capital, grandes fortunas, grandes patrimônios, operações financeiras vultosas e similares.
Portanto, o caminho a ser percorrido para construir uma tributação com justiça fiscal no Brasil será longo e penoso. A afirmação dos interesses populares (da grande maioria da sociedade brasileira), nesse e em outros campos, ainda padece de um fortíssimo déficit de conscientização, organização e mobilização. Sem esses ingredientes, os cenários governamentais, parlamentares, acadêmicos e midiáticos continuarão majoritariamente ocupados pelos atores que instrumentalizam os interesses mais elitistas existentes no tecido social.
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