Em 29 de dezembro de 2023, o presidente da República editou a Medida Provisória nº 1.202/2023, que “revoga os benefícios fiscais de que tratam o art. 4º da Lei nº 14.148, de 3 de maio de 2021, e os art. 7º a art. 10 da Lei nº 12.546, de 14 de dezembro de 2011, desonera parcialmente a contribuição previdenciária sobre a folha de pagamento, revoga a alíquota reduzida da contribuição previdenciária aplicável a determinados Municípios e limita a compensação de créditos decorrentes de decisões judiciais transitadas em julgado.”
Assim, o governo submeteu ao Congresso, com efeitos a partir de 90 dias da publicação da MPV, o restabelecimento da contribuição previdenciária das empresas beneficiadas desde 2011 pela “desoneração”, além de revogar outros benefícios, como a redução a 0% (zero por cento) das alíquotas do Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ), da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), da Contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Contribuição para o PIS/Pasep) e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), incidentes sobre o resultado auferido pelas pessoas jurídicas pertencentes ao setor de eventos – o “Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse)”, e a redução de contribuição previdenciária dos municípios, que adiante examinaremos.
A decisão de regulamentar o restabelecimento da contribuição social sobre a folha de pagamentos das empresas, revogando a “desoneração” instituída pela Lei 12.546, de 2011, e cuja validade exauria-se em 31 de dezembro de 2023, veio em seguida à decisão do Congresso Nacional de derrubar o veto presidencial total ao Projeto de Lei nº 334, de 2023.
Ao aprovar esse projeto de lei, que foi promulgado em 27 de dezembro na forma da Lei nº 14.784, de 27 de dezembro de 2023 o Congresso não somente prorrogou até 31 de dezembro de 2027 a “desoneração da folha”, como introduziu uma novidade: alterou a Lei nº 8.212, de 1991, que trata do custeio da previdência social, para assegurar redução da alíquota de contribuição sobre a folha de pagamento dos municípios vinculados ao regime geral de previdência social, que passaria a ser de 8% – em vez de 20% – para os municípios com menos de 156.216 habitantes, ou seja, segundo os dados do IBGE, 5.378 municípios, com população total de 106,9 milhões de habitantes.
A decisão do Executivo, revogando integralmente a Lei nº 14.784, se baseou na evidência de que a desoneração da folha, além de implicar em continuidade de renúncia fiscal (estimada, em 2024, em R$ 12 bilhões) que ao longo de sua vigência não gerou benefícios no que se refere ao aumento dos empregos formais, ou ganhos de competividade. Segundo a Nota Técnica nº 41, de 6 de novembro de 2017, da Assessoria Especializada do Ministério da Fazenda, os pretensos ganhos sociais decorrentes da ampliação de vagas formais no mercado de trabalho não se confirmaram, mas, ao contrário, conclui pela inexistência de relação custo-benefício justificável da medida, e estudo do IPEA evidenciava a necessidade de reavaliar essa política, “dada a irrazoabilidade de sua manutenção ante o desbalanço no trade off calcado no argumento da empregabilidade”. A revogação do Perse, criado em 2021, durante a pandemia Covid-19, para beneficiar o setor de eventos, foi justificada pelo enorme valor da renúncia fiscal, que, ademais, não mais se justificaria com a retomada das atividades desse setor e em vista da ausência de estudos que demonstrem a relevância e a eficácia do gasto indireto.
Ademais, em ambos os casos, mostrava-se necessário rever tais desonerações para cumprimento do disposto na EC 109, de 2021, que determinou a implementação de plano de redução gradual de incentivos e benefícios federais de natureza tributária, de pelo menos pelo menos 10% (dez por cento), no primeiro ano de sua aplicação, e de modo a que no prazo de até 8 anos, não ultrapasse 2% (dois por cento) do produto interno bruto.
A revogação do benefício tributário aos pequenos municípios, ainda, se fundava na ofensa à isonomia tributária prevista inciso II do caput do art. 150 da Constituição Federal, que veda tratamento diferenciado entre contribuintes. Ademais, essa desoneração, sequer, foi acompanhada de medida compensatória, exigida pela Lei de Responsabilidade Fiscal.
A receptividade da Medida Provisória 1.202, editada apenas 2 dias após a publicação da lei resultante da derrubada do veto presidencial, gerou enorme controvérsia e mal-estar na arena política. Chegou-se a cogitar que o presidente do Congresso Nacional a devolveria ao Chefe do Executivo, impedindo a sua tramitação.
Contudo, não havia nem base regimental, nem constitucional para essa “devolução” da medida provisória. Mas, buscando entendimento, o Executivo aceitou enviar ao Congresso um novo projeto de lei, a ser apreciado com celeridade, contemplado o já previsto no art. 1º da Medida Provisória (restabelecimento parcial da oneração da contribuição previdenciária das empresas “desoneradas”), mas mantendo a revogação do Perse e do benefício para as prefeituras.
Em 27 de fevereiro de 2024, o Chefe do Executivo editou a Medida Provisória nº 1.208, revogando dispositivos da Medida Provisória nº 1.202/2023, suspendendo, assim, o fim da “reoneração”, e revogou a extinção do Perse.”
Dessa forma, o “acordo” implicava em que o Executivo, com efeito, não abriria mão de revogar o benefício tributário para as prefeituras, embora aceitasse a rediscussão, por projeto de lei, da reoneração da contribuição previdenciária dos setores desonerados desde 2011 da extinção do Perse.
Seguindo-se essa regra, a partir de abril de 2024 as prefeituras voltariam a ser sujeitas à alíquota de 20% sobre a folha de pagamentos, a partir de 1º de abril de 2024.
Ocorre que, surpreendentemente, o presidente do Senado Federal, em 1º de abril de 2024, decidiu não prorrogar a vigência da alínea “a” do art. 6º da Medida Provisória, que revogava o § 17 do art. 22 da Lei nº 8.212, de 1991, para, com isso, manter a mantém a desoneração da folha para municípios com até 156 mil habitantes, extinta pela medida provisória. Note-se que essa decisão não afeta os demais dispositivos da MPV 1.202, que continuam em vigor após a MPV 1.208.
A decisão, contudo, carece totalmente de base jurídica e regimental.
Segundo o art. 62 da Constituição, uma medida provisória produz efeitos a partir da data de sua publicação, por sessenta dias. Esse prazo, porém, segundo o § 3º desse artigo é “prorrogável, nos termos do § 7º, uma vez por igual período”. E o § 7º estabelece que “prorrogar-se-á uma única vez por igual período a vigência de medida provisória que, no prazo de sessenta dias, contado de sua publicação, não tiver a sua votação encerrada nas duas Casas do Congresso Nacional.”
Como decorre da simples leitura, a prorrogação é mandatória, e não uma faculdade do presidente do Congresso ou de sua Mesa Diretora. A Constituição determina a prorrogação, em caso de não apreciação.
A Resolução nº 1, de 2002 – CN, que rege a apreciação das Medidas Provisórias, também é clara: segundo o art. 10, “se a Medida Provisória não tiver sua votação encerrada nas 2 (duas) Casas do Congresso Nacional, no prazo de 60 (sessenta) dias de sua publicação no Diário Oficial da União, estará automaticamente prorrogada uma única vez a sua vigência por igual período”. E nos termos do § 1º, “a prorrogação do prazo de vigência de Medida Provisória será comunicada em Ato do Presidente da Mesa do Congresso Nacional publicado no Diário Oficial da União.”
Ou seja: a prorrogação é ato vinculado, e abarca todo o texto da medida provisória. Não cabe juízo de valor, pelo presidente do Congresso, sobre qualquer de seus dispositivos, seja por discordar do seu mérito, seja para impedir a produção de seus efeitos.
O Congresso, porém, pode decidir que uma medida provisória não atende aos pressupostos de urgência e relevância necessários à sua edição. Mas isso requer que haja exame dos requisitos de admissibilidade por uma comissão mista de deputados e senadores e o juízo do Plenário quanto a isso.
O Congresso, sem dúvida, pode rechaçar a medida provisória, negando a maioria de votos para sua aprovação; e pode, simplesmente, deixar “caducar” a medida provisória e não a apreciar no prazo. Nesses casos, o Chefe do Executivo está impedido de editar nova medida provisória com o mesmo teor na mesma sessão legislativa, ou seja, até 22 de dezembro do ano corrente.
Contudo, vencida essa data limite, o Executivo pode submeter ao Congresso nova medida provisória, ou projeto de lei, sobre tema que tenha sido objeto de sua deliberação ao longo da sessão legislativa.
O art. 60 da CF em seu § 5º, prevê, quanto às propostas de emenda à Constituição, que “a matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa.” O art. 62, § 10, veda a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo. E o art. 67 prevê que “a matéria constante de projeto de lei rejeitado somente poderá constituir objeto de novo projeto, na mesma sessão legislativa, mediante proposta da maioria absoluta dos membros de qualquer das Casas do Congresso Nacional.”
Ou seja: ultrapassado o limite temporal, não prevalece a vedação. Seja para edição de nova MPV, seja para apresentação de nova PEC, seja para apresentação de novo PL, nesse caso, mesmo sem apoio da maioria absoluta de deputados ou senadores.
A edição da MPV 1.202, assim, ocorrida em 29 de dezembro, não infringiu os limites temporais, inclusive porque a deliberação sobre a aprovação do Projeto de lei vetado integralmente, e a derrubada do veto, ocorreram antes de 22 de dezembro de 2023.
Mas a proximidade dos fatos gerou, com efeito, um clima político adverso, o que contaminou a própria apreciação da MPV 1.202, que, tudo indica, dado o esvaziamento de seu conteúdo, perderá a sua validade antes de que o Projeto de Lei 493, de 2024, seja apreciado pelas duas Casas.
Nada disso, porém, sustenta, ou justifica, a decisão do presidente do Congresso, de não prorrogar a Medida Provisória nº 1.202 em sua totalidade.
Em tempos em que se critica e questiona o autoritarismo, o desrespeito à Constituição, as ameaças à democracia, adotar uma decisão dessa ordem não pode deixar de configurar um atentado à própria Constituição e às prerrogativas do Chefe do Executivo.
As críticas às medidas provisórias, que temos feito por décadas, são mais do que justificáveis. Afinal, elas são um sucedâneo dos Decretos-Leis do regime autoritário. Mas desde 2001, reformas foram aprovadas para afastar vícios do instituto. Em 2019, o Congresso concluiu a apreciação da PEC 91, de 2019, resultante da PEC 11/2011, do Senador José Sarney, e que tramitou nas duas Casas do Congresso ao longo de 8 anos, reformulando o instituto, mais uma vez. Mas essa PEC, de forma absurda, até esta data não foi promulgada.
Rever as regras constitucionais sobre medidas provisórias, para limitar seu emprego, e condicioná-lo à necessidade da segurança jurídica, é louvável, e necessário.
Mas atropelar o processo legislativo, de forma voluntarista e casuísta, sem observância da própria Constituição e do regimento comum – de que a Resolução nº 1, de 2002-CN é parte – revela uma inconformidade com as instituições que não é compatível com a ordem democrática que tantos, o tempo todo, dizem apoiar e valorizar.
Com efeito, a Constituição é um “cardápio” de normas jurídicas que os agentes políticos, eleitos ou não, podem escolher, ao sabor de seus interesses e conveniências, aplicar ou não. Infelizmente, o que se passa hoje, no Brasil, é exatamente isso.
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