por Ana Trigo*
Junho de 2024 foi um mês particularmente ruim para a população mais pobre e vulnerável do Brasil. E nada disso foi relacionado com discussões financeiras, taxa das blusinhas, alta do dólar, volatilidade do mercado, PIB ou inflação. A pauta econômica discutida pelos jornalistas de economia passa longe da realidade bruta das ruas e das periferias.
Para o horror de quem se importa minimamente com o sofrimento alheio assistimos com estupor políticos que se definem como cristãos em seus currículos e em seus discursos atacando direitos humanos e civis mais primários, como proteção básica ou um prato de comida. Jesus amou as crianças e os pobres e protegeu as mulheres. Mas na Bíblia desses políticos “cristãos” certamente estão faltando muitos versículos do Novo Testamento, como este: “Em verdade vos digo que, quando a um destes pequeninos o não fizestes, não o fizestes a mim” (Mateus 25:45). Ou então, o que parece ser a realidade, nunca se importaram de fato com os ensinamentos de solidariedade do Cristo.
E, sempre que acontece uma repercussão negativa, mudam o discurso. O autor do PL 1904, que ficou conhecido como PL do estuprador, deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), agora diz que ficou comovido com as palavras da ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro. Em uma fala supostamente acolhedora, Michelle divulgou um vídeo dizendo que as mulheres que fazem o aborto legal não deveriam ser criminalizadas, mas sim os “aborteiros”.
Trata-se apenas de uma manobra perversa para tentar tomar as rédeas do tema após a enxurrada de protestos nas redes e nas ruas. Os “aborteiros”, na visão deturpada dessas pessoas, são as equipes médicas. E, apesar da dissimulada intenção de proteger as mulheres, o aborto legal permanece em perigo.
Ao ameaçar os médicos com penas de até 20 anos de reclusão, que profissional realizará os procedimentos que estão previstos na lei, mas que seguem sendo negados às mulheres e meninas pobres e periféricas? Para elas apenas o calvário da exclusão. Quem tem dinheiro pode se dar ao luxo de viajar para o exterior e ter um atendimento digno.
Como se não bastasse esse horror de nível nacional, a cidade de São Paulo é obrigada a conviver com os ataques ferozes do vereador Rubinho Nunes (União Brasil) a quem estende a mão para a população de rua. Conseguiu aprovar em primeira votação o PL 455, de sua autoria, que quer impor uma multa de mais de R$ 17 mil para quem distribuir comida para pessoas em situação de vulnerabilidade. Como uma versão diabólica do caricato Caco Antibes (personagem do ator Miguel Falabella do extinto programa humorístico Sai de Baixo), aquele que gritava “eu tenho horror a pobre!”, o vereador “cristão” comemorou nas redes sociais: “Fim do tráfico de marmitas! Enquanto eu for vereador, não darei vida fácil para essas ONGs”.
Depois da repercussão negativa, tirou a roupa de lobo e vestiu o casaco de ovelha. Em nota, o vereador afirmou que houve uma “interpretação errada e desvirtuada do projeto” pela imprensa em geral. Disse que queria apenas regrar a distribuição dentro de padrões de higiene e otimizar as doações. E suspendeu a tramitação do projeto na Câmara Municipal “para discutir o tema com a sociedade”.
Mas, sempre que pode, acusa quem faz a distribuição de comida, ou oferece o mínimo de conforto a quem passa fome e todo o tipo de privação nas ruas, de serem facilitadores do tráfico de drogas na região central de São Paulo. Quem facilita o tráfico é quem quer institucionalizar o apartheid social com uma política cruel e excludente, como a proposta do PL 445. Nada poderia ser menos cristão que isso.
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* Ana Trigo, jornalista, é mestra e doutora em Ciência da Religião pela PUC-SP. Pesquisadora acadêmica sobre a cracolândia desde 2013, é autora da dissertação “Quando Deus entra, a droga sai”: ação da Missão Belém e Cristolândia na recuperação da dependência química na cracolândia de São Paulo; e da tese “Mulher é muito difícil” – o (des)amparo público e religioso das dependentes químicas na cracolândia de São Paulo. Faz parte dos grupos de pesquisa do LAR (Laboratório de Antropologia da Religião – Unicamp) e do GEPP (Grupo de Estudos Protestantismo e Pentecostalismo – PUC-SP). Também integra o coletivo Mulheres EIG – Evangélicas pela Igualdade de Gênero de São Paulo.
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