Há exatos 35 anos, o Brasil celebrava uma virada na História. O país ganhava uma nova Constituição. Naquela tarde de 1989, enterrou o legado da ditadura militar de 21 anos e consolidou a democracia. A Carta que Ulysses Guimarães chamou de “cidadã” resistiu a tentativas de golpe. Vem se adaptando para enfrentar impasses econômicos e políticos — já soma 131 mudanças. Inovadora, colocou o foco no cidadão, não no Estado, ao inscrever em seus primeiros artigos os direitos e garantias individuais.
Apesar das inegáveis conquistas, sobretudo no campo social, quando a Carta atingiu a maturidade, aos 30 anos, um de seus autores, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, senador constituinte, fez um balanço pessimista: “O que montamos em 1988 está em frangalhos. Um ciclo político acabou e ainda não há outro no lugar. Será preciso liderança para mudar.”
Esse quadro parece ainda mais agudo hoje, em tempos de polarização política e de um Congresso que dá prioridade ao debate orçamentário e deixa as ideias em segundo plano. Permanecem vivos e sem consenso alguns dos temas mais áridos da época da Constituinte. As terras indígenas e a reforma agrária são dois exemplos. A descriminalização do aborto é outro. O papel dos militares segue recebendo interpretações distorcidas, sobretudo depois do governo Bolsonaro.
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Essas polêmicas estão na base da atual disputa entre os Poderes. A harmonia e independência previstas no artigo 2º da Constituição parecem hoje inatingíveis. Sob o argumento de que o Supremo Tribunal usurpa suas competências, o Congresso tenta aprovar leis para tirar poderes da Corte — caso da esdrúxula proposta do deputado Domingos Sávio que permitiria ao Legislativo sustar decisão do Supremo que tenha transitado em julgado “e que extrapole os limites constitucionais”. Ou ainda o projeto, aprovado em pouco mais de 40 segundos pela CCJ do Senado, que altera regras para pedidos de vista e limita decisões monocráticas. Sem contar a tentativa de fixar mandatos para os ministros. Tudo isso em clima de bravata e sem qualquer discussão mais profunda.
Provavelmente, não será fácil levar tais ideias adiante no Congresso, mas elas servem a outros propósitos políticos — demonstrações de força em disputas internas — e desviam atenção de problemas urgentes. A reforma tributária, por exemplo, corre o risco de desandar.
Não é exatamente nova a crise entre os três Poderes. As relações não vão bem desde revelações sobre casos de corrupção envolvendo parlamentares e integrantes de governos, no início do milênio. A situação agravou-se na crise que levou ao impeachment de Dilma Rousseff e, mais recentemente, com a atuação decisiva do Supremo na crise sanitária e na contenção dos ímpetos golpistas de Bolsonaro e seus apoiadores.
A boa convivência entre os Poderes deveria ser um imperativo para seus dirigentes. Afinal, sua harmonia e a independência estão inscritos na Carta como cláusula pétrea. Detalhe: pode parecer incrível, mas esses princípios quase ficaram fora do texto final da Constituição, em 1988. Quinze anos atrás, o ex-constituinte Nelson Jobim, que presidiu o STF e foi ministro da Justiça, contou a esta jornalista que esse e outros artigos entraram na Carta sem serem votados. Quando terminaram as votações na Constituinte, criou-se uma comissão para checar a correção gramatical do texto e organizá-lo para a votação da redação final, que seria apenas simbólica. Um dos parlamentares notou a falha e disse a Jobim.
— E agora, o que fazemos?
— Vamos incluir, não tem outro jeito — decidiu Jobim, então deputado pelo PMDB gaúcho.
Trinta e cinco anos depois, o princípio está lá. Mas ameaçam transformá-lo em letra morta.
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