As emendas parlamentares são aquela fatia do orçamento público definida pelos parlamentares. Até 2015, as emendas eram autorizativas, isto é, aos parlamentares cabia estabelecer o teto de cada um desses gastos, mas estava na mão do Executivo decidir se o gasto seria ou não realizado. Em pesquisa publicada em 2017, a dra. Joyce Luz concluiu que no período de 1992 a 2015 o presidente da República executava uma média de 19% dessas emendas, isto é, menos de 1/5 do recurso solicitado pelos parlamentares era “liberado”. A partir de 2015, esse quadro institucional muda.
Sob a presidência de Eduardo Cunha e num contexto conjuntural conflituoso, a Câmara aprova a impositividade das emendas parlamentares. Já há algum tempo o cientista político David Fleischer vinha alertando que a verdadeira reforma política no Brasil ocorreria se as emendas se tornassem impositivas, num momento em que o debate institucional girava em torno do sistema eleitoral. A partir desse momento, o Executivo perde uma importante ferramenta para construção da governabilidade. É importante ressaltar que, a despeito da impositividade, o valor total da execução seria limitado a 1,2% da Receita Líquida Corrente (RLC). Além disso 50% dos recursos das emendas deveriam ser destinados para programas do Ministério da Saúde (até então esse percentual era de 30%).
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Para além da impositividade, outro elemento importante a ser considerado é o autor da emenda. Para evitar o uso dos recursos públicos visando competição regional por votos e, no limite, espaço para corrupção, uma das conclusões da Comissão Parlamentar de Inquérito que analisou o escândalo dos anões do orçamento concluiu já em 1994 que uma das ações necessárias seria a de “criar regras restritivas à apresentação individual de emendas aos orçamentos, estabelecendo-se prioridades na sua apreciação para que se conformem a critérios gerais de alocação de recursos previamente definidos e que deem preferência àquelas subscritas por bancadas de Partidos, regiões ou Estados” (grifo nosso)[1]. Durante as décadas de 1990 e 2000, essa máxima é levada em conta por uma série de regulamentações que visaram reduzir o espaço para as emendas individuais.
O trabalho do dr. Rodrigo Faria aponta que a partir do governo Bolsonaro há uma inversão e uma fatia menor dos recursos passa a ser destinada às emendas individuais. Para além disso, uma fatia, quase a metade, das emendas passa a ser destinada pelo “relator”. Aqui temos um novo termo do nosso pequeno glossário. Ao uso das emendas de relator já existia, mas numa proporção completamente diferente. As chamadas RP09, rubrica onde estão abarcadas essa categoria de emendas, não gozam da mesma transparência e possibilidade de controle social dos as demais emendas, individuais e coletivas. É preciso que se destaque, no entanto, que as emendas de relator permanecem sendo autorizativas. É como se agora o Congresso tivesse uma fatia do recurso público independente do Executivo e outra que segue dependendo dele, sem transparência e tendo o presidente da Mesa da Câmara como dono da chave do cofre.
A entrada do Judiciário nessa equação restringiu o uso das emendas de relator e agora o debate público é inundado das apelidadas “emendas pix”, que são verbas repassadas por meio de emendas de transferência especial. Foram aprovadas em 2019 por meio da EC n. 105/2019 e estão previstas no artigo 166-A da Constituição Federal. Mais uma vez a questão da transparência pública é levantada no debate que volta a incluir o Supremo Tribunal Federal. Duas colunas recentes trataram do tema, a primeira de Hélio Tollini e Marcos Mendes, na Folha de São Paulo, e outra de Leonardo Barreto, no Blog do Noblat, do Metrópoles.
Tollini e Mendes fizeram um salutar esforço de calcular a porção 2do orçamento discricionário a disposição do Legislativo e chegam a incríveis ¼ do total dos recursos disponíveis. Pecam, no entanto, pela comparação com os países da OCDE, quase todos parlamentaristas e na conclusão rasa pela mudança do sistema eleitoral. Já Barreto alega que as emendas estão no DNA da democracia brasileira e que “se as emendas fossem proibidas do dia para noite, o Congresso no Brasil sofreria um forte golpe de legitimidade”. Entendemos que o debate não gira em torno da proibição das emendas, mas sim no aumento do montante e falta de transparência. Com relação a esse último ponto não parece haver discordância. Barreto também credita o uso das emendas ao sistema eleitoral.
Em trabalho apresentado na Associação Brasileira de Ciência Política, Lara Mesquita, Joyce Luz e Fernando Limongi, ao contrário, ressaltam que não há evidências de que as emendas pré-2015 eram moeda de troca para compra de apoio. Os autores chamam a atenção para o fato de que os problemas de governabilidade não se resumem ao orçamento público. Esse ponto precisa ser ressaltado. Concomitante ao processo de fortalecimento do Legislativo diante do Executivo veio a centralização exacerbada dos trabalhos no Legislativo. Os partidos, tão relevantes e hierárquicos na arena eleitoral, não se movimentam para retomar as prerrogativas perdidas na arena Legislativa. Nada disso será resolvido por meio da mudança do sistema eleitoral, é preciso ficar atentos para o velho discurso da panaceia da reforma eleitoral, mais antiga que a própria Constituição.
[1] BRASIL. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. Relatório final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito: criada através do requerimento n. 151/93 – CN. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 21 de janeiro de 1994.
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