A representação política é um processo de delegação que exige confiança. A possibilidade de alternância de poder é a ferramenta possível numa democracia liberal para que eleitores fiscalizem e punam os detentores de cargos eletivos. É preciso deixar claro que não é desejável que a democracia seja reduzida ao processo de escolha de representantes (ainda que seja impossível pensar numa democracia sem integridade eleitoral. Os economistas enquadrariam essa questão no que se convencionou chamar de assimetria informacional do processo de delegação.
A assimetria ocorre quando um sujeito, seja ele ou ela quem for, escolhe outro sujeito para tomar uma decisão em seu lugar. Se o detentor do poder de escolha, o principal, pudesse tomar todas as decisões, tomaria. Mas não pode, tem outras ocupações. No caso da política, é impossível para o representado estar presente ou participar de toda a gama de decisões tomadas por seu representante. Ainda que se possa desafiar a máxima de que nos tempos modernos ninguém tem tempo para nada, mesmo que todos nós cidadãos tivéssemos todo o tempo do mundo, ainda seria preciso que houvesse interesse nas questões públicas.
Disso decorre que boa parte da decisão por um nome para falar em seu lugar é profundamente arraigada numa relação de confiança. Eventualmente essa confiança é inclusive emprestada, perguntamos a alguém em quem confiamos em quem confiam. Evidentemente é preciso que haja ferramentas de controle para que se limite a quantidade de poder de cada um desses atores, mas nosso ponto aqui não é o controle horizontal, mas o vertical. Junto com a onda de descrédito na política e nas instituições que culminou em 2018 veio o ímpeto de micro gerenciar a atuação parlamentar de representantes eleitos.
Nesse contexto passam a surgir diversas iniciativas puramente quantitativas para julgar o trabalho empreendido pela Câmara dos Deputados e Senado Federal, sempre no sentido de provar que os parlamentares estão trabalhando. O controle social é uma ferramenta importante para limitar o poder e combater todas as formas de corrupção, mas existe um risco na criação de indicadores que é o do comportamento estratégico dos atores diante dos critérios estabelecidos. É por isso que entendemos que há um sério risco de deterioração do processo decisório democrático chamado produtivismo legislativo.
Por trás desse conceito existe a ideia de que quanto maior o número de normativos editados pelo Legislativo, mais ele fará seu trabalho. Ora, a função do Poder Legislativo é mediar as demandas que estão na sociedade, demandas essas muitas vezes conflitantes entre si. Disso decorre que um bom processo decisório será aquele que mais incluir atores e entidades diretamente atingidos por uma eventual mudança no quadro regulatório. Processos decisórios atabalhoados podem resultar em decisões tecnicamente ruins ou numa redução ainda maior da legitimidade do parlamento. A despeito disso tudo, a medida da quantidade de normativos aprovados parece ocupar um lugar de destaque no debate público pouco qualificado e reverbera no Congresso Nacional.
O tradicional recesso branco de 2022 deu lugar às sessões remotas, que seguem ocorrendo sem nenhum critério estabelecido, somente a partir da discricionariedade do presidente da Mesa. 2024 será ainda mais complicado nesse sentido porque o presidente da Mesa agora não pode se reeleger e terá um ano certamente bem diferente dos anteriores. Os riscos para o desenho institucional são de maior conflito entre Poderes, já que decisões pouco refletidas convidam o Judiciário a cada vez mais decidir sobre temas deliberados no Legislativo. O maior risco, no entanto, é democrático. A centralização dos trabalhos legislativos, que também se deu por outros processos que não apenas as sessões remotas, pode contribuir para um aprofundamento da crise de legitimidade que sofre o Legislativo.
Controle social não é microgerenciamento e produtivismo legislativo não aprofunda a democracia. É preciso criar critérios claros para sessões remotas e criação de comissões especiais e grupos de trabalho.
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