César Fonseca*
Prá quem sabe ler, um pingo é letra.
O novo discurso do presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL), de que não pretende “sacanear” o presidente Lula, mas combater seus articuladores políticos, que estariam dificultando relações com o Congresso, é, simplesmente, tentativa de golpe político do Centrão no Palácio do Planalto, visando mudar correlações de forças.
Lira considera estar sendo sacaneado pelo principais homens do presidente: ministro Rui Costa (PT-BA), Casa Civil, e o trio de assessores fundamentais – ministro Alexandre Padilha (PT-SP), secretário de governo; senador Jacques Wagner (PT-BA), líder no Senado, e deputado José Guimarães (PT-CE), líder na Câmara. Lira, que dispõe de ampla maioria da direita e centro-direita, podendo contar, ainda, com a ultra-direita fascista bolsonarista, está, simplesmente, dizendo que se articula para derrubar o governo, mas preservando o presidente, cercado daqueles com quem não se dá bem, por não fazer o jogo que ele quer fazer.
Que jogo é esse? Deixar o presidente como rei da Inglaterra, apenas, sentado no trono, sem mandar nada, apenas, figuração, uma simples representação de neoparlamentarista tupiniquim. O parlamentar alagoano já está ensaiando o semipresidencialismo, pregado pelo ex-presidente golpista, Michel Temer. Nada aconteceria sem o dedo do neoparlamentarismo de ocasião comandado pelo presidente da Câmara.
O exemplo mais destacado, como todos vivenciam, é a sustentação dele à sabotagem praticada pelo Banco Central Independente (BCI) de manter taxa de juro elevada em meio à inflação cadente, para manter economia semiparalisada, caminhando para paralisação total.
Verdade e retórica
Os discursos do presidente Lula no exterior, de grande impacto internacional, prometendo, ao lado da luta pelo fim da guerra na Ucrânia, iniciar imediatamente parte das 14 mil obras paralisadas pelo neoliberalismo bolsonarista, entre 2018 e 2022, é, ainda, pura retórica. Se fosse verdadeiro, Lula seria imbatível em 2026. É o que não quer a direita da qual Lira é líder. A retórica de Lula, para os conservadores, não pode virar verdade.
Esse quadro não mudaria, enquanto ele, Lira, estiver bancando o BCI, que sustenta crescimento medíocre do PIB na casa de 1% ao ano, no ritmo do monetarismo ditado de Chicago por Campos Neto. Lira deixou claro que Campos Neto, porta-voz da bancocracia, à qual Lira, também, se rende, é imexível. Não está nas cogitações dele, portanto, mexer os pauzinhos para ajudar Lula a retomar as obras paradas.
O poderoso parlamentar alagoano, por isso, está, claramente, produzindo ambiguidades, quando diz que não vai “sacanear” Lula, mas ressalta que seus auxiliares estão na mira dele. Ora, se ele visa sacanear não Lula, mas atrapalhar a vida dos principais homens do presidente, está, indiretamente, afirmando que não quer trabalhar com eles, nos termos colocados por eles. Há, desde já, a propensão do deputado alagoano de jogar com reforma ministerial.
Ele mira, principalmente, no mais destacado assessor lulista, o secretário Padilha que estaria desafinando a orquestra da qual Lira já se julga o maestro. A briga está aberta.
Briga em dose dupla
Essa guerra, por sinal, não se desenrola, apenas, em relação a Lira. O presidente do Congresso, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), como o titular da Câmara, é, igualmente, aliado da bancocracia, defensor do BCI de Campos Neto, que não topa o arcabouço fiscal flexível, do ministro da Fazenda, Fernando Haddad.
Pacheco resiste à tentativa lulista de efetivar política monetária e fiscal mais frouxa para permitir conclusão das obras prometidas pelo presidente, que lhe garantiria outro mandato presidencial, enquanto ele já visa disputar o cargo com o apoio financeiro dos banqueiros, que estão ao lado da política do BCI. Assim, tanto Lira como Pacheco deixam claro que estão na defesa do jogo duro do BCI, antidesenvolvimentista, antinacionalista, de modo a dar continuidade ao bolsonarismo sem Bolsonaro, mas com Lula, o desenvolvimentista, cujo discurso, por enquanto, é só retórica.
Direita dá as cartas
Pacheco, semana passada, reuniu a nata do neoliberalismo para debater com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, o ajuste neoliberal proposto por Campos Neto, mas não levou para a discussão nenhum anti-monetarista à lá Paulo Guedes. A voz da direita econômica, que levou o país, politicamente, ao fascismo, à tentativa de golpe em 8 de janeiro, predominou, no Senado, sob presidência de Pacheco, enquanto a da esquerda não foi convidada a participar, por meio dos seus representantes mais eloquentes na atualidade.
Campos Neto se sentiu em casa para redobrar suas pregações segundo as quais não haverá, seguramente, redução das taxas de juros, na escala necessária à retomada do desenvolvimento sustentável, enquanto não acontecer aquilo que o neoliberal Armínio Fraga defendeu, na tribuna, como um dos mais destacados convidados, ou seja, um arrocho administrativo na máquina do governo.
Ora, o discípulo de George Soros, que, quando presidente do BC, na Era FHC , cuidou de afrouxar todos os regulamentos e freios à livre penetração do capital especulativo na economia, entrou de cabeça no clube do neobolsonarismo sem Bolsonaro, para jogar ao lado de Campos Neto contra Lula.
Armínio, que tempos atrás, antes do golpe de 2016, que derrubou Dilma Rousseff, ensaiou mea culpa, dizendo que o grande erro dos neoliberais, como ele, foi o de manter excessivamente elevada a taxa de juros, bem acima do crescimento do PIB, aprofundando desigualdade social, rasga o que disse, para reafirmar sua tara ultraneoliberal.
Reforma ministerial facista à vista?
O que se vê claramente no Congresso, portanto, é discurso sincronizado entre Pacheco e Lira para sabotar o governo Lula. Ambos querem, desde já, uma reforma ministerial para reverter a pregação desenvolvimentista lulista, substituindo-a pela pregação neoliberal antidesenvolvimentista bolsonarista fascista.
Simplesmente, articulam uma política econômica recessiva para levar Lula à derrota eleitoral nas eleições municipais de 2024 e na eleição presidencial de 2026. A predisposição da direita neoliberal para derrotar Lula é a mesma que se desenrola na Argentina. Lá os neoliberais já descartaram a possível reeleição de Alberto Fernandez ao impor, por meio do FMI, arrocho fiscal e monetário que levou a inflação a 104% ao ano. Impossível vencer qualquer disputa eleitoral com inflação nesse patamar.
Mutatis mutantis, no Brasil, o jogo do FMI, que se pratica, na Argentina, é o mesmo que executa o BCI de Campos Neto: não deixa a economia crescer por impor restrição monetária e fiscal que inviabiliza circulação de dinheiro no mercado. Nesse momento, Buenos Aires virou paraíso de compras da classe média alta brasileira que vai dançar tango e compartilhar com os Hermanos a alegria de terem ganhado a Copa com a exuberância futebolística do gênio Messi.
Washington x Brasil-Argentina
Há uma diferença, apenas, relativa entre FMI e BCI, nesse momento. O Fundo Monetário enxugou toda a liquidez e obrigou o governo a taxar exportações para ter dinheiro em caixa a fim de pagar juros e amortização da dívida.
O resultado é explosão inflacionária. Por enquanto, salvam Lula as reservas internacionais que ele acumulou na casa dos 350 bilhões de dólares.
No entanto, não pode usá-las, enquanto as expectativas, para a inflação futura, se mantiverem altas, ao juízo do BCI, sob contestação generalizada dos economistas comprometidos com apoio à produção e o consumo de bens e serviços, em contraposição aos economistas serviçais da Faria Lima.
Oposição ao dólar demoniza Lula e Fernandez
A verdade é que, tanto, na Argentina como no Brasil, as circunstâncias políticas mudaram, acentuadamente, nas últimas semanas, quando Lula e Fernandez aceleraram defesa da aliança dos dois países com a China, defensora de novo sistema monetário internacional. Claramente, o novo jogo Brasil-Argentina é tentar isolar o dólar, que, no contexto da guerra na Ucrânia, de remédio virou veneno para as economias capitalistas periféricas.
Lula radicalizou o discurso contra a hegemonia do dólar
Fernandez, na Argentina, já faz o mesmo no comércio bilateral entre moedas latinas – peso e real – e moeda russa(rublo)e moeda chinesa(yuan). Por isso, Fernandez e Lula passaram a ser tratados a pão e água por Washington. Como Arthur Lira e Rodrigo Pacheco estão umbilicalmente ligados ao mercado financeiro, radicalmente contrário ao discurso anti-dólar, o clima tanto no Congresso brasileiro, como no argentino, onde o dólar compra as consciências políticas, é de beligerância contra Lula e Fernandez.
Esse é o motivo do encontro dos dois presidentes nessa terça feira em Brasilia e, igualmente, a razão da convocação, por Lula, de um encontro dos líderes latino-americanos para fortalecerem a Unasul contra a radicalidade de Washington, visto que América Latina se mostra cada vez mais propensa a se aproximar da China e da Rússia.
*Repórter de economia e de política, em atividade em Brasília desde 1974, trabalhou em várias das maiores redações do país. Formado em História pela Faculdade de Belo Horizonte e em Jornalismo pelo CEUB, é editor do site Independência Sul-Americana (em renovação para relançamento em breve).
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