Parlamentares frequentemente se deparam com demandas para incluir novos temas ou itens no currículo escolar. O prato predileto são novas disciplinas. Há literalmente dezenas de projetos de lei enterrados na Câmara e no Senado propondo acrescentar matérias e temas no currículo escolar. As razões são as mais diversas. Pressões corporativas. Convicção moral ou ideológica. Ingenuidade. Boas intenções. A recente discussão do ensino médio reforça essa ideia de que é preciso legislar e é preciso criar muitas disciplinas para os alunos e que isso faz bem para a sua formação e para melhorar a educação.
Nesse diapasão, a Comissão de Direitos Humanos do Senado acaba de aprovar um projeto estipulando que as disciplinas de história, ciências, artes e cultura do Brasil e do mundo incluam conteúdos sobre feminismo. O projeto ainda terá uma longa tramitação, o que sugere a oportunidade para refletir sobre o tema. É inegável a importância do assunto. É fora que questionamento a boa intenção da autora, a deputada Tabata Amaral, de resto uma das mais preparadas e competentes da Casa.
Mas será que é por aí que vamos transformar a educação?
Comecemos com um exemplo “polêmico”. Que tal incluir nos currículos o tema da mulher no judaísmo e no cristianismo? Aí teríamos uma legião de heroínas dos mais variados tempos, culturas e matizes começando por Eva, passando pelas mulheres de todos os estilos e classes sociais do Velho Testamento como Sara, Rebeca, Raquel, Lia, Miriam, Débora, Rute, Ester. Possivelmente haveria um capítulo especial para Maria, a mãe de Jesus, e outras mencionadas no Novo Testamento, como as irmãs de Lázaro, Marta e Maria; Maria Madalena; Lídia de Tiatira; Priscila; e tantas outras. Ao longo da história haveria outras incontáveis mártires e heroínas – a não menos importante Mônica, mãe de Agostinho; Clara, a inseparável companheira espiritual de Francisco de Assis; Tereza de Ávila; a guerreira e ativista Joana d’Arc; Edith Stein; Tereza de Calcutá; Dorothy Day; Irmã Dulce; e por aí vai. São todas figuras ilustres não apenas no cristianismo, algumas delas expoentes da cultura e civilização ocidental. Alguma dúvida sobre o exemplo deixado por essas extraordinárias mulheres? Alguma chance de o projeto ser aprovado?
E que tal outra reflexão – sempre para estimular o leitor a uma reflexão mais profunda sobra educação: por que nossos alunos sabem tanto sobre Afrodite, e tão pouco sobre Hera ou Artemis? Tão mais sobre Pandora e tão menos sobre Deméter? E o que sabem ou o que poderiam aprender com personagens como Antígona, Jane Eyre ou Hester Prynne?
Outro exemplo, mais geral: imagine a lista dos itens que poderiam ser objeto de inclusão no currículo. Se pensarmos apenas nas minorias – as do presente ou ao longo da história. Imagine incluir no currículo considerações relevantes a respeito de todos os grupos endógenos ou que migraram para o Brasil – ou qualquer país – ao longo da história. Ou dos sem qualquer coisa – sem casa, sem teto, sem mobilidade etc etc etc.. A lista seria infindável.
Temas relacionados a injustiças não faltam – nem são de hoje. Incluir novos temas no currículo quase sempre surge de preocupações legítimas, tais como a necessidade de relevância, atualizar o ensino, adaptá-lo a mudanças sociais, tecnológicas e econômicas, promover a inclusão e diversidade, e por aí vai. Garantir que temas relevantes para minorias e questões sociais sejam abordados, assim como a prevenção e a conscientização sobre questões emergentes, como saúde mental, meio ambiente e cidadania digital, são outros exemplos dessas motivações.
O diabo está nos detalhes, no preço a pagar, no custo de oportunidade. Onde fixar os limites? Como priorizar os temas? Onde e quanto abordá-los? Imagine se cada parlamentar tiver direito a incluir um tópico no currículo – só aí teríamos mais de 500. Há alguns anos, filosofia e sociologia foram incluídas como disciplinas obrigatórias no ensino médio. A pergunta inevitável é: por que não economia, psicologia, astronomia, nutrição, relações internacionais, planejamento urbano – já que todas tratam de importantes questões?
Legislar sobre os detalhes do currículo tipicamente resulta em desvantagens significativas para o sistema escolar. Uma delas é a sobrecarga. Cada lei que adiciona matérias ou itens ao currículo resulta em perda de foco e redução do essencial e aumento do acidental – gerando uma carga excessiva que torna difícil para os professores ensinar todos os tópicos de forma adequada. Nesse contexto, ensinar torna-se sinônimo de “citar” ou “mencionar”.
Nas últimas décadas isso tem levado a um ensino superficial e fragmentado no qual os alunos não conseguem aprofundar seus conhecimentos em temas essenciais. A concepção da BNCC em torno de “objetos de conhecimento” é um exemplo cabal do não entendimento do que seja um currículo. A fragmentação do ensino é outra desvantagem significativa. A inclusão de múltiplos temas específicos desvia o foco dos conceitos essenciais e compromete a coesão e profundidade necessários para o aprendizado das disciplinas essenciais, dos instrumentos para pensar. A escola deve servir para ajudar os alunos a pensar – e não sobre o que pensar – embora essa segunda questão não seja irrelevante. Até mesmo o libertário Voltaire assinaria em baixo.
Um exemplo claro é a educação financeira. Em alguns países, a inclusão obrigatória desse tema no currículo resultou em uma abordagem quase sempre superficial devido à falta de tempo e espaço, e também levando em conta outras limitações, como a familiaridade de professores com o tema. O resultado foi um conhecimento raso e ineficaz sobre finanças pessoais, sem um impacto significativo na vida prática dos alunos. Ao mesmo tempo tira-se tempo para o ensino de tópicos relevantes da matemática.
A educação moral e cívica também pode ser problemática quando imposta por lei. Tentar legislar sobre valores e cidadania pode levar a interpretações divergentes e dificuldades na implementação prática, além de possivelmente infringir a liberdade de crença e pensamento. Questões de moralidade e ética são complexas, variando amplamente entre diferentes culturas e grupos sociais e tornando-se cada vez mais difíceis de abordar no mundo pós-moderno. Em boa medida, a antiga disciplina escolar Educação Moral e Cívica foi revivida pela Sociologia. Mas essa continuou sendo imposta como obrigatória aos sobrecarregados estudantes do ensino médio, submersos em quase duas dezenas de disciplinas obrigatórias.
Uma das consequências de um currículo muito detalhado tem sido a introdução de critérios cada vez mais específicos na avaliação dos livros didáticos pelo programa oficial (PNLD – Programa Nacional do Livro Didático). Isso vem contribuindo para uma padronização cada vez maior dos livros e para a morte do autor. Consequência: livros didáticos com dez quilômetros de extensão e meio milímetro de profundidade. E, apesar de todos os controles e patrulhamentos, os livros continuam carregados de distorções ideológicas de toda natureza. Ou seria por causa deles?
Cada vez mais a inclusão de temas específicos no currículo – controversos ou não – pode gerar conflitos significativos. Por exemplo, legislar sobre a inclusão de educação sexual nas escolas pode ser visto como uma necessidade urgente para alguns, mas como uma intrusão inaceitável para outros. A polarização em torno de tais temas acaba prejudicando o ambiente educacional e desviando recursos e atenção de outras prioridades educacionais.
Não há saída fácil, pois na ponta também encontramos sérias restrições que vão do despreparo dos professores para lidar com uma variedade de temas (polêmicos ou não) à dificuldade crescente de consenso dentro da escola e entre essa e a comunidade escolar. Quanto maior a inclusão de temas específicos – e especialmente de temas que se prestam a divergências de toda natureza – maior o potencial de esgarçar a energia das escolas e tirá-las do que deveria ser o seu foco.
Em vez de legislar para adicionar temas específicos ao currículo, uma alternativa mais eficaz seria adotar currículos robustos focados nos conceitos essenciais de cada disciplina. Garantir que os currículos se concentrem nos fundamentos de cada área do conhecimento proporciona uma base sólida de conhecimento e habilidades para os alunos. Para os interessados basta consultar os currículos dos países que obtêm boas novas do Pisa – não há segredo.
Um currículo focado nos conceitos essenciais das disciplinas essenciais – combinado com a flexibilidade e autonomia e liberdade para os autores dos livros didáticos e para as escolas – poderia constituir uma abordagem mais eficaz para a educação, garantindo alguma profundidade no aprendizado e relevância no conteúdo ensinado. Currículos devem respeitar as mulheres e ressaltar seus feitos e contribuições ao longo da história. É preciso chamar atenção e tratar de assuntos que foram tratados de maneira inadequada, tendenciosa, incorreta ou injusta ao longo da história, absolutamente! O mesmo vale para inúmeros outros temas e grupos que foram esquecidos ou subjugados. Mas não precisamos legislar sobre isso. De boas intenções o inferno está cheio.
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