Com um Congresso mais alinhado à direita em relação ao governo, o primeiro ano da legislatura foi marcado por embates entre o Executivo e o Legislativo, em meio a vitórias e derrotas das pautas governistas. Essa resistência inicial ao governo Lula pode ser vista como reflexo da composição das Casas. A maior bancada partidária da Câmara dos Deputados, por exemplo, foi o PL, partido de Bolsonaro, com 99 parlamentares, seguido pelo PT, de Lula, com 68. Enquanto o petista, fundador e líder da principal sigla de esquerda do país, teve de fazer aliança com o centro para voltar ao poder, a maior parte da sociedade elegeu o Parlamento mais conservador da história recente.
O marco temporal das terras indígenas e a desoneração da folha de pagamento foram algumas das derrotas de Lula na esfera do Legislativo, uma vez que os vetos presidenciais às leis foram, em sua maioria, derrubados. Por outro lado, o Senado e a Câmara demonstraram comprometimento com a pauta econômica do Executivo. A reforma tributária, esperada por mais de 40 anos, além de representar uma vitória histórica do governo, também teve o carimbo de Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, e de Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do Senado. Outros projetos aprovados como a taxação das apostas esportivas e dos super-ricos deram margem para o Executivo perseguir a meta fiscal prevista.
Leia também
Relembre 15 das principais matérias aprovadas pelo Congresso e que viraram lei em 2023. Algumas delas mexem diretamente em sua vida, outras, indiretamente, na medida em que podem elevar a arrecadação do governo, repercutindo em políticas públicas.
Reforma tributária
A reforma tributária foi a principal matéria legislativa aprovada neste primeiro ano de legislatura. Promulgada no último dia 20, sob relatoria de Eduardo Braga (MDB-AM) no Senado e de Aguinaldo Ribeiro (PP-PB) na Câmara, a Emenda à Constituição 132/23 promoveu mudanças substanciais no sistema tributário do país, a começar pela unificação de impostos.
A reforma tributária unifica os atuais cinco tributos na área de comércio, bens e serviços em duas novas categorias. O Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), o Programa de Integração Social (PIS) e a Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins) serão substituídos pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) em nível federal. Enquanto o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e o Imposto Sobre Serviços (ISS) serão unificados no Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).
PublicidadeA transição, porém, começa apenas em 2026, quando os dois novos impostos, CBS e IBS, gradualmente começarão a substituir os atuais. Em 2032, haverá a substituição total dos tributos. Outro ponto da reforma é a origem da tributação. De acordo com o texto, a cobrança dos impostos será no destino do serviço ou bem, e não mais na origem. O período para essa transição, contudo, é mais longo, com início em 2029 e previsão de terminar em 2077.
Arcabouço fiscal
O projeto foi um dos pontos de tensão entre Legislativo e Executivo neste ano. A matéria era para disciplinar os gastos públicos e substituir o teto de gastos, criado em 2016 durante o governo Temer. Uma das mudanças previstas pelo arcabouço fiscal era a autorização do aumento das despesas mediante a variação da receita. A União fica autorizada a elevar os gastos em até 70% do aumento da receita. Essa medida, no entanto, foi derrubada pelo Congresso, impedindo espaço de manobra em relação ao déficit fiscal.
Além disso, o orçamento anual, estabelecido pela Lei Orçamentária Anual (LOA), é elaborado com base nas metas previstas pelo arcabouço fiscal.
Desoneração da folha
O Congresso aprovou lei que prorroga o prazo da desoneração da folha de pagamento de 17 setores até 2027. O impacto na renúncia fiscal estimado pelo governo era de R$ 18 bilhões, afetando diretamente a arrecadação de recursos e a perseguição da meta fiscal de déficit zero. Por esse motivo, a lei enfrentou vetos da presidência, que também foram derrubados pelos parlamentares. O governo pretende apresentar uma nova proposta para os congressistas.
Para a maioria dos parlamentares, a desoneração é uma medida de garantia de postos de emprego, pois diminui o custo operacional das empresas na contratação de mão de obra. Outro ponto contemplado pela lei é a redução de 20% para 8% a contribuição a todos os municípios com até 142 mil habitantes, o equivalente a 5.377 cidades. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anunciou nessa quinta-feira (28) que o governo vai propor reoneração gradual da folha. A proposta já enfrenta resistência no Congresso.
Desempate no Carf
O Planalto e a equipe econômica conseguiram importante vitória no Congresso ao restabelecer o voto de desempate a favor do governo nas votações do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). O Carf é o órgão do Ministério da Fazenda que decide as disputas tributárias entre os contribuintes e a Receita Federal. Até 2020, quando havia empate nas decisões, prevalecia o voto do presidente da câmara de julgamento — sempre um representante da Fazenda.
A Lei 13.988, de 2020, extinguiu o voto de qualidade e deu vantagem aos contribuintes nas votações que terminassem empatadas. Segundo o Ministério da Fazenda, a retomada do voto de qualidade pode evitar uma perda anual de R$ 59 bilhões para a União.
Taxação das apostas esportivas
A pauta econômica foi de grande interesse do governo durante o primeiro ano da legislatura a fim de aumentar a arrecadação. Um dos projetos com essa intenção foi o PL das bets, como foi chamado. Empresas do ramo de apostas esportivas precisarão, de acordo com a lei, ter autorização do Ministério da Fazenda para funcionar. Além disso, as casas de apostas deverão pagar imposto de 12% sobre a receita obtida, e os ganhadores de apostas pagarão 15% em prêmios que excederem R$2.112. A expectativa do governo é arrecadar R$ 1,6 bilhão com a taxação.
Taxação dos super-ricos
Outro projeto da pauta econômica, a tributação de aplicações financeiras em fundos especiais de investimento e em offshores, instituições sediadas fora do Brasil cujos investimentos não são tributados, promete arrecadar uma cifra bilionária em 2024. R$ 7,05 bilhões com a tributação das aplicações no exterior e R$ 13,28 bilhões com os fundos de investimentos exclusivos. A medida ajuda o governo a perseguir a meta fiscal e cumpre com a promessa de campanha de taxar grandes fortunas.
Valorização do salário mínimo
Uma das promessas de campanha de Lula, a retomada da política de reajuste do salário mínimo foi aprovada pelo Congresso este ano. Conforme a nova regra, o valor é definido com base na correção anual do Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), mais o Produto Interno Bruto (PIB) consolidado de dois anos anteriores. Até 2019 o salário mínimo era definido considerando-se o PIB do ano retrasado e a inflação medida pelo INPC. O governo Bolsonaro mudou o cálculo e passou a levar em conta apenas a variação da inflação do INPC. Antes de sair de recesso, Lula assinou decreto elevando de R$ 1.320 para R$ 1.412 o salário mínimo em 2024. Com o novo valor, o mínimo terá alta de R$ 92, o equivalente a 6,97% – percentual acima da inflação do IPNC, que acumulou 3,85% em 12 meses até novembro.
Desenrola Brasil
O Congresso aprovou o Programa Desenrola Brasil, de renegociação de dívidas, de autoria do Executivo. Cerca de 11,5 milhões de pessoas foram atendidas pelo Desenrola Brasil, que já renegociou R$ 32,5 bilhões em dívidas desde o lançamento da iniciativa, conforme o Executivo. Criado com o objetivo de recuperar as condições de crédito de devedores com dívidas negativadas, a iniciativa foi prorrogada até 31 de março de 2024.
Cartão de crédito
Em acordo com o governo, os parlamentares incluíram no mesmo projeto do Desenrola Brasil limite para os juros do rotativo e do parcelado do cartão de crédito. Embora não tenha imposto um percentual para o teto, o texto deu 90 dias, a partir da publicação da norma, em outubro, para que as emissoras de cartões apresentem uma proposta de teto, a ser aprovada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). O rotativo do cartão de crédito ocorre quando o cliente não paga o valor total da fatura e joga a dívida para o mês seguinte. Atualmente, a taxa média anual dos juros rotativos do cartão de crédito é de 445,7%.
Terras indígenas
Lula, em sua subida na rampa do Palácio do Planalto, durante a cerimônia de posse, estava acompanhado do cacique Raoni, em um claro aceno e compromisso em defesa dos povos indígenas, em franca oposição à guerra aberta pelo governo Bolsonaro com os povos originários. O governo até tentou frear o marco temporal, vetando trechos da proposta aprovada às pressas pelos parlamentares após derrota em julgamento no Supremo, mas foi derrotado pelo Congresso. O texto do senador Marcos Rogério (PL-RO) estabelece o marco temporal para terras indígenas. Com isso, os povos indígenas só teriam direito a terras que ocupavam ou disputavam em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal.
A matéria foi uma das que mais evidenciou o cabo de guerra entre Congresso e Supremo Tribunal Federal (STF). Segundo o entendimento da Corte, a tese é inconstitucional. Após a decisão, o projeto foi votado a toque de caixa, em requerimento de urgência, e amplo apoio dos congressistas. No final de setembro, durante a votação no plenário do Senado, o PL recebeu 43 votos favoráveis e 21 contrários. Na votação dos vetos, na Câmara, 327 deputados votaram para derrubar o veto, enquanto 121 para manter, e um se absteve. No Senado, o placar foi de 53 votos para derrubar o veto de Lula e 19 para mantê-lo.
Lei dos Agrotóxicos
O presidente Lula sancionou com vetos, nesta semana, a lei que flexibiliza as regras de aprovação e comercialização de agrotóxicos no país. O projeto tinha como intenção original modernizar o mercado desses insumos, a solução encontrada pelo senador Fabiano Contarato (PT-ES), relator da matéria, era encontrar um meio termo entre os interesses da bancada ruralista e dos ambientalistas. O presidente Lula vetou trechos da lei, como a exclusividade do Ministério da Agricultura para decidir sobre o uso dos agrotóxicos, o que excluía Ibama e Anvisa.
Bolsa para estudantes de baixa renda
O governo sancionou lei complementar que direciona até R$ 6 bilhões do superávit do Fundo Social, do Ministério do Desenvolvimento Social, no Orçamento de 2023, para o pagamento de bolsas estudantis para estudantes do Ensino Médio inscritos no Cadastro Único. A lei pretende, por meio da bolsa estudantil, incentivar a permanência de estudantes desfavorecidos na escola, minando a evasão escolar que muitas vezes se dá pela necessidade de trabalhar e contribuir com despesas domésticas.
Igualdade salarial
Sancionada em julho, a lei que estabelece igualdade salarial entre homens e mulheres que exercem o mesmo cargo altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). O texto propõe que empresas que descumpram a medida paguem multa no valor de dez vezes o salário que a mulher deveria receber, pautado em quanto recebe o homem que exerce o mesmo cargo. Se houver reincidência o valor da multa pode ser cobrado em dobro.
Apesar da medida estabelecer paridade entre os gêneros, não foi consenso no Congresso. Inclusive, as seguintes deputadas votaram contra o projeto de lei: Julia Zanatta (PL-SC), Silvia Waiãpi (PL-AP), Chris Tonietto (PL-RJ), Caroline de Toni (PL-SC), Carla Zambelli (PL-SP), Bia Kicis (PL-DF), Rosângela Moro (União-SP), Dani Cunha (União-RJ), Adriana Ventura (Novo-SP) e Any Ortiz (Cidadania-RS).
Lei de Cotas
A lei que institui cotas para ingresso em instituições federais no ensino superior, promulgada em 2012, foi atualizada pelo Congresso em 2023. Pretos, pardos, indígenas, quilombolas e portadores de deficiência fazem parte da política. Outro ponto da lei é a reserva de 50% das vagas de ingresso nos cursos de graduação para estudantes com renda familiar igual ou menor a um salário mínimo. O monitoramento será anual e a avaliação da política de cotas acontecerá a cada dez anos.
Dia da Consciência Negra
Antes feriado apenas em seis estados e em 1,2 mil municípios, o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, 20 de novembro, tornou-se feriado nacional. A sanção de Lula para a lei aconteceu neste mês e o dia já figura no calendário de feriados de 2024, divulgado pelo Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos.