Artigo escrito em parceria com Eugenia Cabral, doutora em ciência política (PPGCP-UFPA)
Entre os especialistas da área de estudos legislativos a perspectiva de especialização dos parlamentares em matérias de políticas públicas tem fomentado boas análises sobre o papel do Parlamento nas sociedades democráticas. Os parlamentares podem requerer estudos técnicos antes de elaborar uma proposta legislativa e, ainda mais importante, antes de relatar uma proposta de lei e recomendar sua aprovação ou rejeição.
Em um contexto de defesa do direito de propagar ideias sem fundamentos científicos e distorcidas, com o objetivo de direcionar a opinião política do cidadão, qual é o lugar e alcance da assessoria especializada no Congresso brasileiro?
O desprezo pela informação qualificada fundamenta a cruzada de parlamentares de extrema direita no sentido da imposição dos dogmas de alguns segmentos da sociedade. Como exemplo, no final de maio o Congresso Nacional manteve o veto do ex-presidente Bolsonaro à criminalização das fake news durante as campanhas eleitorais. Há um movimento político que defende o direito de mentir e direcionar mentes incautas a rejeitarem o guia da informação subsidiada em dados.
Nesse cenário, direitos que protegem os mais vulnerabilizados estão sendo mutilados, como no caso da punição de 20 anos de prisão às mulheres que praticarem aborto a partir de 22 semanas de gravidez. Pelas regras do PL 1904/2024, de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), as mulheres violentadas, geralmente meninas que ainda não entendem o próprio corpo, serão obrigadas a cumprirem uma agenda, como se tivessem feito um planejamento para abortar, sem considerar o quão traumática é essa decisão.
E o que isso tem a ver com o trabalho técnico especializado no Parlamento? Ora, não está posto nesse debate os diagnósticos de saúde pública no Brasil, que mostram o crescimento anual dos casos de estupro, especialmente, de vulneráveis. Os 33 deputados que assinaram o PL 1904/24 desconhecem os dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS/IBGE) a partir dos quais estimou-se que, anualmente ocorrem, cerca de 820 mil estupros no país, embora apenas 10% desses casos cheguem ao conhecimento do poder público? Se não concordam com as estimativas, ignoram os dados registrados nas delegacias de polícia?
No 1º semestre de 2023 foram 34.428 casos de estupro de meninas e mulheres; em 2022, foram 74,9 mil casos, sendo 66,5 mil do sexo feminino e destes, aproximadamente, 40 mil meninas, com até 13 anos de idade. Os dados oficiais são apenas uma amostra do problema e não há como deixar de relacioná-los com os casos de gravidez indesejada e, por conseguinte, com o direito de decidir por sua interrupção, conforme definem as regras atuais. Mas, para o autor do PL 1904, e os 33 deputados que o assinaram, é suficiente justificar que a maioria da população brasileira rejeita o aborto, sem ponderar suas implicações. Especialistas afirmam que essa proposta viola padrões internacionais de direitos humanos e se contrapõe às recomendações da ONU a respeito dessa temática.
Se são dogmas religiosos que justificam a preferência e as escolhas do conjunto de parlamentares, então cabe-nos refletir se deputados e seus assessores técnicos desconhecem a ideia de Estado laico, professado pela Constituição Federal de 1988, onde se deve garantir a liberdade de culto religioso e, ao mesmo tempo, a não interferência de nenhuma religião em matérias sociopolíticas, econômicas e culturais.
O presidente da Câmara, deputado Arthur Lira, acelerou a tramitação de uma proposta com tema extremamente relevante, para garantir apoio das bancadas religiosas ao seu sucessor na eleição para a presidência da Casa e para facilitar articulações nas eleições municipais. A tramitação do PL 1904 sob regime de urgência desconsiderou a necessidade de discussão da matéria no âmbito das comissões parlamentares, que são os espaços onde atuam os atores políticos (internos e externos) que detêm informações sobre as matérias analisadas; nessas instancias são promovidos debates para subsidiar as decisões tomadas em plenário. O confronto de perspectivas embasadas em informação e sob o escrutínio público da sociedade fica inviabilizado sob o regime de tramitação urgente.
Não se trata, entretanto, de desinformação por alguma falha de assessoria especializada acerca da matéria, pois a ausência de embasamento técnico-científico é deliberada e tida como desnecessária. Para a estratégia política de Lira e dos líderes partidários conservadores, é mais importante manipular as regras para atropelar o processo ordinário de deliberação que favorecem o debate e o papel imprescindível da oposição democrática. Trata-se de uma expertise institucional a serviço de dogmas e interesses de poder que desprezam a autonomia da mulher – a misoginia de sempre se sente ameaçada e contra-ataca em pessoas que gestam, mesmo que na cama de um posto de saúde.
Mas Lira não contava com a forte reação da sociedade, incluindo representantes de igrejas no parlamento. Em enquete realizada pela Câmara 88% dos respondentes discordam totalmente do PL 1904/2024. O Conselho Federal da OAB aprovou parecer técnico-jurídico apontando a inconstitucionalidade da proposta. Manifestações nos meios de comunicação e nas ruas apontaram a hipocrisia e o espírito antidemocrático dessa imposição conservadora.
Nos estudos de Ciência Política destaca-se, entre os recursos disponíveis ao exercício dos trabalhos parlamentares, o papel das assessorias legislativas que podem ser de dois tipos: a assessoria política, de livre escolha dos parlamentares, e a assessoria técnica, constituída por funcionários de nível superior, contratados por concurso público para o quadro de funcionários, geralmente portando o grau de especialização, mestrado e doutorado em diversas áreas. Eventos políticos atuais parecem pôr em cheque a valorização, pelos parlamentares brasileiros, dos serviços da assessoria especializada.
No quadro atual de representação no Legislativo brasileiro a tão falada expertise parlamentar em políticas públicas não é um ativo importante para os grupos políticos conservadores. E não se trata apenas de temáticas sobre valores, visto que temáticas sobre meio ambiente também são votadas sob o guia de preferencias ideológicas fechadas ao debate técnico especializado. Importa, nesse contexto, o domínio de regras que facilitam a tramitação acelerada de projetos que retrocedem décadas em direitos e reforçam estruturas de dominação.
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