O dia 1º de abril está marcado duplamente nos capítulos mais tristes da história democrática brasileira. Foi nessa data, em 1964, que o então presidente João Goulart foi obrigado a deixar Brasília e o cargo para evitar, em suas próprias palavras, um derramamento de sangue diante do golpe militar iniciado na véspera. Ditadura militar com respaldo civil que resultaria no assassinato e na cassação de direitos políticos de centenas de brasileiros e na tortura de milhares de pessoas. Também foi nesse dia, há exatos 46 anos, que o Congresso Nacional foi fechado pela 18ª e última vez em 200 anos.
Com períodos que foram de duas semanas, como o registrado em abril de 1977, a quase uma década, na ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas, o fechamento ou a dissolução do Parlamento brasileiro nunca foi solução para nada. Mesmo assim, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF) nunca foram tão atacados em período democrático como nos últimos quatro anos, quando foram alvos de protestos muitas vezes incentivados pelo então presidente Jair Bolsonaro.
Após os atos realizados no feriado de 7 de setembro de 2021, mobilizados por faixas e gritos de guerra pelo fechamento do Congresso e do Supremo, uma pesquisa publicada pelo Instituto Datafolha apontou que 31% dos entrevistados não consideravam aquelas ações antidemocráticas.
Ainda assim, outro levantamento divulgado no ano passado, chamado de “A cara da democracia”, mostrou queda no percentual dos brasileiros que não confiam no Parlamento brasileiro: caiu de 58%, em 2018, para 46%, em 2022.
A vontade do Executivo
Entre Dom Pedro I e II, Deodoro da Fonseca, a Era Vargas e a última ditadura militar, o fechamento do Congresso teve sempre como objetivo cessar conflitos democráticos e perpetrar a vontade do Executivo. Vozes distintas, discursos parecidos.
Na primeira vez em que isso ocorreu, em 1823, o imperador Dom Pedro I, após confronto com os deputados, mandou prender e exilar alguns parlamentares e criou um Conselho de Estado para redigir a Constituição, que outorgou em 1824. Da última vez, em 1977, foi a voz do general Ernesto Geisel, que proclamou que o MDB havia instaurado uma “ditadura da minoria”, após o Congresso rejeitar uma emenda constitucional em sinal de declínio do partido governista, a Arena. Geisel antecipava-se ali, com mudanças nas regras do jogo, para evitar uma derrota eleitoral que se avizinhava no ano seguinte, o que poderia antecipar o final da ditadura.
“Obviamente que isso é algo antidemocrático, é algo autoritário, porque na origem da ideia de Congresso, Executivo e Judiciário, você tem a separação de poderes, um controle mútuo sobre essas esferas”, explica o cientista político e coordenador de pesquisas do Congresso em Foco Análise, Ricardo de João Braga. “Como regra, o que você tem no fechamento do Congresso é o fortalecimento do poder Executivo, que é unitário. Um presidente que toma o poder totalmente para si ao fechar o Congresso governa como ele bem entende”, completa.
O Congresso “é um retrato, com todos os méritos e mazelas, da sociedade brasileira”, afirma o historiador e doutor em Educação Renato de Sousa Porto Gilioli. “Todo Parlamento carrega o melhor e o pior de uma sociedade. Isso não se restringe ao Brasil. É exatamente essa a função essencial do Parlamento: representar o conjunto dos cidadãos”, observa.
Pesquisa realizada pela Confederação Nacional do Transporte (CNT), feita em 137 municípios de 25 estados nas cinco regiões do Brasil, em 2020, mostrou que 21,7% das pessoas ouvidas disseram ter baixo interesse por política e um número expressivo, 31,6%, afirmaram que não tinham interesse algum.
Embora os dados sejam alarmantes, para Gilioli, eles refletem a frustração da sociedade com um conflito que sempre vai existir. “Como o Congresso é múltiplo, do ponto de vista do indivíduo, seja lá quem ele for e que tendência política ele tenha, a impressão pessoal de cada um tende a consagrar a percepção de que ‘a maioria’ dos políticos pensa ou age diferente do que aquele cidadão específico gostaria. De fato, isso sempre acontecerá. E ainda bem que é assim. Imaginemos que o mundo político fosse uma mera projeção do que um pequeno grupo pensa ou quer. Não daria certo. Seria a autocracia, seja ela formalizada ou não”, diz o historiador.
Segundo o cientista político Henrique Mecabô, apesar de o Congresso ter seus defeitos, o fechamento do Parlamento nunca seria uma solução. “Nosso Parlamento tem, sim, seus defeitos, mas a solução jamais seria ficar sem ter onde parlar. Para ser atuante e independente, o Congresso precisa estar aberto e repleto de parlamentares preparados que não estejam à venda para meramente carimbar o que vem do executivo”, afirma.
Para Mecabô, a frustração com a política deve se transformar em vontade de fazer parte dela, mudar o cenário. “Ao me ver desapontado e indignado com nossa política, vi também que o caminho não é a desistência, mas uma participação política ainda mais ativa da sociedade. Me preparei, dei a largada no ano passado e sigo nessa jornada. Se nosso Congresso hoje é parte do problema, podemos fazer dele, amanhã, a solução”, observa o cientista político, relatando por que lançou-se candidato a deputado federal no ano passado.
Congresso é múltiplo
A palavra “parlamento” vem do francês parlement, antigo tribunal de Justiça na França e de parler, que significa falar. Esse seria o objetivo com a criação da Câmara e do Senado, de dar voz ao povo, do diálogo entre diferentes ideias.
A Câmara dos Deputados foi criada pela primeira Constituição brasileira, em 1824. A Constituição do Império instituiu a Assembleia Geral Legislativa, composta pela Câmara dos Deputados, com 102 integrantes nomeados por meio de eleições indiretas, e pela Câmara dos Senadores, com 50 integrantes de mandato vitalício, que eram membros da nobreza, da magistratura e do clero.
Três anos e meio após a proclamação da Independência do Brasil ocorreu a sessão de abertura da primeira legislatura da Assembleia Geral Legislativa, em 6 de maio de 1826. “A importância histórica naquele momento era não só consolidar a independência do Brasil como um ente político autônomo, porque o Brasil se libertou de Portugal formalmente em 1822, quanto de certa forma criar um formato institucional que colocasse o Brasil junto de países que eram bem vistos, bem avaliados na época”, explica Ricardo de João Braga.
18 vezes
O Parlamento no Brasil, porém, já nasceu com as portas semiabertas. Oito meses após a Independência, em maio de 1823, foi instalada a Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa do Império do Brasil, com o objetivo de criar a primeira Constituição do país. Seis meses depois, em confronto com os deputados, o imperador Dom Pedro I dissolveu a assembleia e criou um Conselho de Estado para redigir a Constituição, outorgada em 1824. Desse dia até hoje, o parlamento foi fechado mais 17 vezes.
Seguindo o exemplo de seu pai, Dom Pedro II chegou a dissolver o Parlamento em 11 ocasiões, sempre que o embate entre conservadores e liberais ou entre os legisladores e o governo atingia um grau considerado elevado demais pelo imperador. É preciso, porém, no caso de Dom Pedro II, lembrar que o regime é parlamentarista e, nesse caso, a dissolução do Parlamento é parte comum do processo político.
Dois anos após depor, em 1889, com um golpe militar a família imperial, o primeiro presidente da República, Marechal Deodoro da Fonseca, também impôs silêncio ao Parlamento. “Não posso por mais tempo suportar esse Congresso: é de mister que ele desapareça para a felicidade do Brasil”, afirmou o presidente, que foi obrigado a renunciar o cargo algumas semanas depois.
Durante a Era Vargas o Congresso foi fechado duas vezes: a primeira após a revolução de 1930 – ele foi reaberto dois anos depois – e outra em novembro de 1937, quando o líder gaúcho deu um golpe, instituindo a ditadura do Estado Novo. Por meio de pronunciamento de rádio, o presidente fez críticas ao “regime democrático, que tantos males vinha causando, e ao Congresso, que nada produzia e criava dificuldades às iniciativas do governo”.
Na ditadura militar, em meio a tantas agressões à democracia e aos direitos humanos, o Congresso foi fechado quatro vezes. Ao longo do regime ditatorial, mais de 170 parlamentares federais foram cassados (veja a lista mais abaixo). Primeiramente em 1965, pelo Marechal Castelo Branco com o AI-2, que dava ao presidente o poder de decretar o recesso do Congresso, e a prerrogativa de legislar nesse período. O parlamento foi restabelecido após alguns meses e novamente foi suspenso em 1966, quando Castelo Branco decretou recesso de um mês para conter um “agrupamento de elementos contra-revolucionários”, nas palavras dele, que tinha se formado no Legislativo “com a finalidade de tumultuar a paz pública”.
Em 1968, o General Costa e Silva, baixou o Ato Institucional nº 5 (AI-5), fechando o Congresso para, segundo ele, combater a subversão e as “ideologias contrárias às tradições de nosso povo”. O AI-5 foi o decreto mais duro da ditadura militar. Proibiu a garantia de habeas corpus em casos de crimes políticos, deu poderes quase absolutos ao presidente da República, cassou mandatos políticos, aposentou servidores compulsoriamente, decretou a censura e fechou o Congresso. O estopim do ato foi um discurso feito pelo então deputado Márcio Moreira Alves (MDB), em 2 de setembro de 1968, em que ele defendeu o boicote aos desfiles de 7 de setembro, chamando o regime militar de “valhacouto de torturadores”.
Em 1o de abril de 1977 o Brasil amanheceu com o Congresso fechado. O então presidente da República, o general Ernesto Geisel, se utilizou do AI-5, em vigor desde 1969, para colocar em recesso o Parlamento. Duas semanas depois Geisel reabriu o Congresso e instaurou uma série de medidas apelidadas pela imprensa de “pacote de abril”, composto por uma emenda constitucional e seis decretos. A eleição de 1974, da qual o partido da oposição consentida, o MDB, saiu como grande vitorioso, ligou sinal de alerta para os militares, que temiam pelo resultado das urnas no ano seguinte.
O objetivo principal do pacote era dar à Arena, o partido do governo, o controle do Legislativo, com o aumento das bancadas do Norte e do Nordeste na Câmara dos Deputados e a eleição indireta de um terço dos senadores, escolhidos por um colégio eleitoral constituído por deputados das assembleias legislativas e por delegados das câmaras municipais. Era a instituição dos chamados senadores e governadores biônicos, alçados ao poder por força dos militares, sem o voto popular.
Paralelamente, a ditadura vivenciava na ocasião um período de grande repressão, sobretudo a estudantes, muitos deles sequestrados, torturados, mortos ou “desaparecidos” até hoje. A insatisfação contra a violência e a política econômica de concentração de renda, com o declínio do chamado “milagre econômico”, resultou em diversas manifestações, abrindo caminho para as greves dos metalúrgicos na região do ABC, em São Paulo, em 1978, das quais emergiu um líder político chamado Luiz Inácio Lula da Silva, mais tarde o único brasileiro eleito presidente da República três vezes.
Parlamentares cassados pela ditadura:
Veja no vídeo abaixo, da TV Senado, como foi o fechamento do Congresso em 1977:
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